O Castigador
14/02/2011 - Capítulo 62
Existe ou não existe?O julgamento prossegue com contornos de ansiedade, tensão e cansaço. Outra depoente que vem à tribuna acusar Sebastian é Tita, a empregada da casa, que começa falando muito rápido, dizendo que o réu era um patrão muito ruim, que a achincalhava e seduzia ao mesmo tempo. Queria que ela se entregasse para ele como se isso fizesse parte de seu serviço. Diz que a ameaçava mandar embora caso recusasse a atender prontamente suas ordens. Com lágrimas e fotos de família nas mãos, justifica que demorou tanto para denunciar porque precisa do salário para sustentar um irmão doente.
Contudo, certa hora, começa a chorar de outra forma. Ela se assusta com o que sente e grita que não deveria estar ali. Sem pedir licença ou dar explicações, sai correndo da sala. Mas é trazida de volta. No entanto, insiste em dizer que não quer mais estar ali. Não agüenta mais conviver com a pressão que lhe acompanha há semanas. Denuncia que Alicia a obrigou a estar ali e dizer tudo aquilo e participar de outras tantas coisas para prejudicar Malena.
Chora, pede perdão por ter mentido e diz que não quer perder o emprego. Confessa que sempre preferiu Hernandez como patrão e que jamais teve simpatia por Sebastian, porém, sublinha que ele jamais cometeu qualquer um daqueles atos que ela acabara de dizer. Entre as armações que admitiu ter participado, facilitou a entrada de Hernandez na casa, passou informações que ouviu para Alicia, trocou remédios de dona Valentina e deu drogas que desconhece para alguns moradores da casa.
Causa um estranhamento coletivo o fato de tantas pessoas se arrependerem do que fizeram ou disseram e reassumir o caminho da verdade ao passar por aquela tribuna. Será coincidência ou intervenção de forças superiores? Ninguém conseguia ver, mas ao lado da tribuna havia a presença de vários espíritos de luz. Aqueles que se permitiam ser tocados redimiam-se dos pecados que cometeram ou estavam prestes a cometer. No entanto, a luz não conseguia penetrar em alguns encarnados devido à espessa barreira de sombras que criaram em torno de sua aura.
Nesse contexto, a mãe de Sebastian se apodera do microfone e tenta a todo custo acusar o filho. Relata episódios familiares que tentam demonstrar uma criança e um adolescente agressivo, individualista e possessivo. Inventa e reinventa fatos negativos sobre aquele que ela diz ser capaz de ir ao inferno quando quer uma coisa. Diz que ele a agrediu física e verbalmente várias vezes. Mostra marcas no corpo. Diz que tem fortes indícios de que ele envenenou a própria avó. Diz que o perdeu e que não sabe onde falhou, pois sempre fez questão de demonstrar seu amor materno. Diz que ele não a ajuda financeiramente mesmo sabendo de suas dificuldades.
E mais: diz que aquilo ali que estava em sua frente não era um filho, mas um monstro. Um monstro capaz de agredi-la de todas as formas possíveis e imagináveis. Diz que se houvesse realmente castigo divino, deus a castigara quando colocou Sebastian em seu ventre. Dentre tantos dizeres não gagueja em momento algum. Tem olhos fixos e sombrios, como que feitos de vidro, capazes de alvejar um samaritano. Com a mesma austeridade que entrou, sai da sala satisfeita e renegando sua criação.
Sebastian se pergunta como é possível tanta raiva e rancor em uma só mulher. Tenta se lembrar de um momento em que ela lhe foi verdadeiramente mãe e abaixa a cabeça após não ter sucesso em sua busca. Mesmo conhecendo aquela mulher como ele conhecia era difícil escutar aquele depoimento, em específico, incólume. Tantas coisas presas em sua garganta. Sua alma em ebulição. Mas ao contrário de esbravejar e responder tantas coisas ditas cala-se em oração.
O pai vem logo a seguir. Com a cara amarrada e uma roupa amassada está mais nervoso do que de costume. E, por alguma razão inexplicável, desmente a mãe. Diz que jamais conseguiu amar o filho por ciúme. Ciúme de o filho ser melhor que ele. Ciúme de o filho ter crescido mais na vida do que ele. Ciúme de o filho ter gostado mais de outras pessoas do que dele. E faz conhecer que a mãe, extremamente controladora e possessiva, jamais admitiu ver o filho feliz longe dela.
De forma corajosa, roga que a convivência dele com o filho não vai dar certo nunca; que se pudesse nunca o teria colocado no mundo; que tem vontade de dar um soco em sua cara; que não o considera parte de sua vida. Entretanto, diz que precisa, mesmo sem saber a razão dessa precisão, confessar que Sebastian é incapaz de matar uma pessoa e de fazer as coisas que falam dele. Deixa expresso que não quer mais vê-lo, porém reafirma que não pode ser mais injusto do que sempre foi com ele.
Cala-se e deixa a sala do julgamento acompanhado pelo silêncio dos que acompanham boquiabertos a sequência dos relatos.
Juana Barón, funcionária da rede de joalherias Palácio, foi paga e devidamente preparada por Alicia para difamar seu cunhado. Ensaiou exaustivamente um discurso pelo qual atribuiria a Sebastian a culpa por práticas criminosas, entre elas roubo de jóias e assédio sexual com funcionárias. A idéia era construir a imagem de um Sebastian pecador em todos os sentidos. No entanto, ela não conseguiu mentir. Foi mais uma a fraquejar. Disse que ele jamais quis se envolver nos negócios da esposa e que sempre amparou o empreendimento quando necessário. Em relação aos assédios, diz que sempre foi muito respeitoso e de pouca conversa com qualquer uma delas.
Um dos representantes da cúpula do Ministério Público convocado a depor confirma presença e se manifesta no sentido que a trajetória de Sebastian sempre foi marcada por polêmicas. No entanto, atesta que ele sempre prestou seu papel com bastante dedicação e honestidade. Diz que houve alguns rompantes, próprios da personalidade do promotor, mas nada a ponto de envergonhar a Casa, ao contrário, em seu ponto de vista a atuação de Sebastian sempre fortaleceu e dignificou a instituição. De forma inesperada, termina seu depoimento dizendo que confirmada à inocência de Sebastian o Ministério Público estará pronto para recebê-lo de volta.
Alguém das cadeiras pergunta se aquela é a mesma opinião da Presidência da República. O procurador não responde. E o silêncio dele é interpretado de várias maneiras pela imprensa.
Malena é chamada e surge deslumbrante, trajando um vestido champanhe e cabelos soltos. Sebastian sorri um sorriso leve e se alimenta daquela imagem que lhe traz conforto e afeto. Diz que se enganou a julgar o marido e, de forma espontânea, conta alguns episódios de seu relacionamento. Provoca risos e comoção nos presentes. Entre outros acontecimentos, conta como o conheceu e se deu o episódio da morte de Diego e de Gastón. Emociona-se e emociona com a mesma delicadeza. Conta que ele nunca quis um centavo dela e que seu único defeito era se dedicar demais ao trabalho e à fé. Deixa vir à tona a admiração do marido por padre Mariano e pela igreja de São Miguel Arcanjo.
Revela o Sebastian romântico, frágil e apaixonado que existe por detrás daquela figura de promotor-castigador. Diz o quanto sofreram quando ela perdeu o bebê, o quanto ele chorou e ainda chora. Engasga com palavras, lacrimeja com lembranças, pausa seu depoimento várias vezes. Fala das tentativas do marido em conquistar a confiança e o carinho dos filhos. Aborda sua mudança espiritual.
Diz que acredita piamente na inocência do marido e que quer continuar construindo sua vida ao seu lado. Aproveita o fato de estar em público e pede desculpas por ter desconfiado dele, por não ter estado tão presente nos últimos momentos e perjura seu amor. Pede licença ao juiz para dar um beijo no esposo, mas tem seu pedido negado. A platéia, envolvida pela história, vaia a decisão do magistrado.
Malena sai acenando para o marido que, por sua vez, desenha seu amor no ar.
O julgamento é interrompido no intuito de restaurar a ordem.
O próximo a falar é Marcel Bresson, o espírita francês que faz questão de deixar claro que as declarações de Sebastian encontram abrigo no Espiritismo. Que não há nada de errado ou de ilegal em acreditar em espíritos. Que devemos viver a liberdade e a pluralidade religiosa. Admite que mesmo dentro do Espiritismo exista quem duvide da existência de um Deus cruel e castigador, porém, ele chama a atenção para a necessidade de se discutir abertamente essas opiniões. Fala do bem que Sebastian está fazendo para a doutrina, permitindo seu crescimento por meio do debate e sua oxigenação ao trazer novas informações e experiências.
O depoimento prossegue com um bispo, que lamenta o assassinato do padre e acusa Sebastian de deturpar a ordem religiosa vigente. Diz que tudo o que ele fala é inverdade, que nada se sustenta. Que quer manchar a reputação da igreja católica. Que é um herege, e que além de ser condenado pela igreja com a pena máxima da excomunhão deve ser punido pela justiça dos homens, pois milhares de pessoas estão se deixando influenciar pelas suas falações e práticas. Pessoas estão morrendo por conta dessa seita que está sendo cultivada por ele.
Ainda nessa linha, um representante do Vaticano diz que o corpo da Igreja Católica está sendo profundamente atingido pelos atos desmedidos de um homem que diz agir em nome de espíritos. Quer que ele se desculpe com a sociedade pelas mentiras que contou, que admita que não exista um Deus castigador e que seja punido rigorosamente. Diz que o Papa está bestificado com tamanhas calúnias e difamações e para comprovar tal descontentamento lê uma carta assinada pelo Sumo Sacerdote. Nas linhas da carta, lida em latim e depois em espanhol, vê-se o levante de uma nova cruzada contra aquele que chamam de inimigo de Deus e da Igreja.
Carta por carta, a mãe de Susana vai à tribuna para dar seu depoimento e ler uma carta que a filha escreveu para Sebastian. A carta foi redigida em segredo pela menina e confiada em um envelope, devidamente lacrado. Ela deu instruções de só ser aberto quando a mãe estivesse diante do réu. Aquela mulher que pisou ali para jogar mais uma pedra contra Sebastian, conta que teve o primeiro contato com o acusado quando ele bateu em seu carro, deixando sua filha numa cama de hospital entre a vida e a morte. Depois confessa que a convivência entre Susana e Sebastian cresceu a ponto de lhe deixar assustada. Tanto que proibiu a filha de vê-lo. Mas agora percebe que se equivocou. Acha que exagerou e está arrependida das acusações que fez. Pede licença para ler a cartinha.
Ao abrir a carta, um desenho simples que a menina fez dela dada às mãos com Sebastian. E uma frase: Somos inocentes.
A promotoria não se convenceu dos argumentos da mãe e da carta apresentada reivindicando assim a presença da menina em caráter extraordinário, uma vez que o réu é acusado de ter abusado física e psicologicamente de Susana. O juiz ordena que busquem a menina para averiguação, mas adverte que ela não poderá ser submetida a qualquer situação de constrangimento.
Ela entra, acompanhada da mãe, e a acusação, mesmo sem querer, provoca um dos depoimentos mais polêmicos e marcantes do julgamento.
Susana chega com a cara ruim e diz que está muito da brava por fazerem seu amigo sofrer. O promotor faz algumas perguntas e ela responde todas com a maior naturalidade possível. Fala da amizade com Sebastian; do quanto ele a compreende; de Jhaver.
O promotor aproveita da fala de Susana para tentar impressionar o juiz e o júri a respeito da má influência que Sebastian tem sobre as pessoas, inclusive, sobre as crianças dizendo que o acusado trouxe traumas profundos à consciência de uma inocente. Fala da gravidade de fazer alguém que ainda está em formação acreditar na existência de um espírito chamado Jhaver. O promotor insiste:
- Jhaver não existe, não é Susana? Isso é uma invenção de Sebastian? O que é Jhaver para você, mais um bicho-papão, mais um monstro criado para lhe fazer obedecer à base do medo? Fale para nós que Jhaver não passa de mais uma lenda?
A menina responde:
- Jhaver existe sim. E se eu fosse você não duvidava disso, porque ele está bem aqui agora, bem ali – indica com o dedo.
A platéia tenta procurar o tal espírito enquanto o promotor provoca:
- Não precisa tentar me convencer da existência do que não existe. Já sou bem crescido para acreditar nessas bobagens. Se eu continua ele vai fazer o quê? Dar-me uma chicotada? Levar-me para o inferno? Fale a verdade, menina. Sebastian usou essa história toda de Jhaver para lhe criar medo e assim abusar de você de alguma forma?
- Para de falar essas coisas. Eu quero ir embora. Não quero mais ficar aqui.
- Meus senhores, estão vendo como esse assunto a incomoda. Isso porque ela foi torturada psicologicamente e quem sabe até fisicamente pelo réu. Ela precisa de tratamento.
- Não gosto que falem mal de Sebastian nem de Jhaver.
- Sebastian é um falso e Jhaver, um objeto da sua imaginação. Sinto acabar com o seu conto de fadas, mas Jhaver não existe.
- Existe sim.
- Jhaver não existe, não existe, não existe – grita o promotor.
Um vento forte invade a sala do julgamento. O vento abre janelas e portas, derruba copos, espalha papéis. Um vento que chega com uma temperatura estranha e com sensações mais estranhas ainda.
A menina se debruça sobre a bancada e quando se levanta, tem olhos e expressões diferentes. Sua voz também não é a mesma:
- Laíla tov. Rega! *
Ninguém entende nada.
- Sempre me esqueço que vocês não compreendem a língua dos anjos, tampouco o hebraico utilizado por Deus no Evangelho e falado por Cristo quando pregava. Antes de qualquer coisa, respondendo a pergunta uníssona que faz seus pensamentos gritarem e os leva ao desequilíbrio de vibrações, quero dizer que este que vos fala é Jhaver.
Observação do autor: * Boa noite. Um momento! (Em hebraico)
Comentários
Nenhum comentário.
Escreva um comentário
Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.