O Castigador
03/08/2010 - Capítulo 43
Um novo castigadorSebastian caminha rezando e engolido cada vez mais pela escuridão. Ele não sabe o que o aguarda, apenas sente necessidade de caminhar. A única luz que existe ali é a dele, um ser humano. Uma luz bem mais fraca do que a dos samaritanos, no entanto, capaz de chamar a atenção de quem vive imerso e, até mesmo, submerso num ambiente sombrio.
O nível de vibração alcançado pelo promotor não permite que ele seja ajudado por Klaus ou por outros espíritos iluminados. Mais do que nunca, está sozinho. E isso mexe com seus ânimos. A sensação é a de que a cada novo passo está mais próximo da morte. Porém, em alguns casos, a morte não é o fim, mas o começo da tormenta.
Já não tem noção de onde está, tampouco para que lado deva ou não caminhar. Apenas segue em frente. É o único caminho que lhe sobra. Tem a sensação de que está num imenso declive. É como se descesse para os porões, para as catacumbas, para as profundezas de um mundo tão desconhecido quão assustador.
Há várias criaturas terríveis o açoitando pelo caminho. Criaturas desfiguradas, animalizadas, demonizadas. Contudo, não é propriamente um levante de monstros que o apavora. O que ataca Sebastian desferindo-lhe vários golpes é o seu mundo interior.
Naquela caverna, muitos de seus traumas e medos vêm à tona. A imagem de Malena morta num caixão. Ele se aproxima e se vê chorando em cima daquele corpo. Mais à frente, uma das vítimas que acusou no tribunal aparece enforcada. Seu filho natimorto aparece devorado por ratos. Observa-se numa cama de hospital, velho e sozinho, sem poder contar com os cuidados de ninguém.
E a solidão lhe dói como dor alguma jamais ousou doer.
Será que está morto? Aquele parece o tal túnel que a crença popular se refere. Aquele pelo qual todos passam quando se morre. Um túnel de lembranças. Ao contrário de pedradas e cusparadas, aplausos.
O promotor prepotente, que humilha seus acusados e parece ter prazer nisso é saudado como um umbralino naquele ambiente fétido. Sua presença ali é quase um deleite para o Umbral. É como se retornasse para casa. E isso o angustia. E isso o provoca. E isso o faz ficar com raiva e temor de si próprio.
Sebastian encontra algumas pessoas que fizeram parte de suas outras vidas. Enxerga ele próprio, em existências passadas, morrendo de acidente de trânsito, de tuberculose, de infarto, queimado, baleado, espancado. E vai sofrendo cada uma daquelas dores novamente. Tem vontade de parar, de sair correndo dali. Mas insiste.
No caso da morte por tiro, uma das últimas, sente a primeira bala novamente perfurando seu estômago. A carne sendo dilacerada. A segunda bala se aloja em seu pulmão. Hemorragia e falta de ar. A terceira bala pega no ombro, exatamente no momento em que se virou para trás para olhar nos olhos da mulher que o olhou com olhos de Malena.
Gemidos e gritos e sussurros que não passam.
No decorrer do caminho, um tronco com uma mulher que o promotor Sebastian acusou de assassinato. Ela foi morta na cadeia semanas depois do julgamento. Ali, ela é torturada com golpes de corrente. O couro da mulher se desfaz e se refaz para ser novamente atacada. Aquele sofrimento se estende há uma eternidade. E ele, de certa forma, é o culpado.
Mais uma vez vê Malena, Micaela, Tomás, Diego, Gastón, Valentina e tantos que sentaram no banco dos réus a sua frente chorando por sua causa. Choros quietos e escandalosos. Choros de pavor e revolta. Choros doidos que o fazem se sentir cada vez pior.
Pouco depois, ele se vê matando um homem com golpes de facão. Olha para suas mãos e as vêem com manchas negras, sangrando aquele mesmo sangre podre que vaza pelas paredes daquela espécie de caverna. Fica com nojo de si próprio. A dúvida se é ou não um deles o apavora.
E vozes surgem daquelas paredes chamando-o de assassino. E braços surgem daquelas paredes tentando puxá-lo para junto deles. Porém, ele resiste.
Um monte de lembranças conhecidas e desconhecidas vai passando em sua cabeça. Ele fica tonto, com dor de cabeça, sua energia fraqueja e o leva ao chão. Ao cair, criaturas asquerosas o lambem e o cheiram, como que reconhecendo seu parentesco sombrio.
Na sua cabeça, uma voz diz que não adianta resistir ou adiar sua estada ali. Também não adianta negar a própria essência, já que está definitivamente condenado aquele lugar. Não há como lutar contra isso. Os castigos de Jhaver consolidaram seu ingresso no Umbral.
As vozes e os cenários o pressionam a desistir. Na hora da fraqueza maior, ele ainda encontra forças para rezar. Mais do que pedir por arcanjos ou santos, ele reza arrependendo-se de tudo o que fez. E a oração afasta aquelas criaturas na medida em que sua luz aumenta consideravelmente. Ele não pode fraquejar. É preciso continuar.
No entanto, essa luz que envolve seu perispírito oscila bastante, mudando de intensidade, forma e cor. Ora cresce ora míngua. Ora é continua ora o contorna com falhas. Ora é amarelada, azulada, esverdeada ora é fosca. Conseqüência de sua fé estar sendo posta à prova. Mais do que à redenção, sua fé pode lhe levar à queda.
Sua fé em Maria Santíssima, em Deus, em São Miguel e, até mesmo, em Jhaver, é válida. No entanto, o que ele necessita mesmo neste momento é ter fé em si mesmo para superar o que o rodeia, o que o espreita e o que o habita.
Conforme muda os passos, aqueles fantasmas do passado vão se agarrando em suas pernas, rasgando sua roupa, pedindo ajuda. Sua mãe com os olhos furados, cheio de vermes, pede ajuda. Seu pai, com as vísceras para fora da barriga, pede ajuda. Diego, estrebuchando na rua depois do acidente, pede ajuda. Micaela abortando o filho que carrega, pede ajuda. Tomas boiando em uma espécie de piscina cheia de musgo, pede ajuda. A cabeça de Valentina rola a sua frente e pede ajuda.
São espíritos transfigurados, aparecendo e desaparecendo em sua estrada, projetando e redimensionando seus medos.
Ele cambaleia e vê Hernandez e Malena se beijando durante os passos de um tango. Os dois ali, na sua frente, se amando em uma dança provocante. Ela gemendo e gritando de prazer. Ele sente duas mãos abraçando seu peito e um hálito frio em seu pescoço. Olha para trás, é Alicia com taças de champanhe e uma língua de cobra: venenosa, longa e com a ponta cortada em duas.
Desvencilha-se dela, corre e encontra uma mulher vestida de noiva. Uma mulher sem rosto. E o vestido branco se torna preto e depois vermelho e escorre como sangue, formando o tapete vermelho da igreja. Fecha os olhos e quando os abre novamente encontra só o corpo da mulher tomado de sangue. Noiva da própria morte. O buque que trazia na mão direita se transforma em um feixe de serpentes. E aquela mulher, com olhos de vidro, olha para ele e diz: traidor, traidor, traidor.
Trata-se de um noivado adolescente que ele desmanchou e a jovem se matou depois de uma bebedeira. Vivenciado isso, fechou-se por um longo tempo para os relacionamentos. Acreditou que jamais conseguiria amar outra vez até conhecer Malena.
Ele corre e se encontra menino. Entra numa espécie de quarto e acha seu pai transando bêbado com outras duas mulheres. E ele congratula a chegada do filho oferecendo-lhe uma daquelas prostitutas. O menino corre para a casa das avós.
Sebastian conta o acontecido para a mãe e apanha. Apanha por inventar histórias, por colocar em xeque a honra do pai.
Ele sente o peso das mãos de sua mãe, que bate nele com um cinto. Ele sente o peso das mãos do pai, que bate nele com tapas e socos. Ele sente o peso das suas próprias mãos, tentando se asfixiar.
E revive ali cada uma das vezes que tentou se matar. Tentou enrolar uma linha de nylon em torno do pescoço, tentou tomar uma série de comprimidos, tentou pular de uma ponte, tentou dar um tiro na cabeça, tentou cortar os pulsos. Tentou, tentou, tentou e foi tentado. No entanto, sempre fraquejou.
E os espíritos ali presentes lhe trazem cordas, venenos, facas, revolveres... Querem ajudá-lo. É a chance dele finalmente se matar. E ele revive aquelas dores aquelas angústias, aqueles desesperos lhe devorando por dentro e por fora.
Vê seu corpo sendo consumido pelos vermes, deteriorando-se, sentindo todas as sensações decorrentes deste estado de putrefação psíquico.
Agora, sem qualquer projeção de imagens, Sebastian somente escuta as vozes de Malena que ecoam por aquele túnel. Vozes que, primeiramente dizem declarações de amor, e logo mudam de tom para lhe acusar de várias coisas. O envolvimento com a cunhada, a tentativa de abusar da enteada, as privações que lhe faz passar, a forma com que controla a vida da família, o jeito com que trata sua mãe...
Escuta que Micaela e Tomás não são e nunca serão seus filhos. Escuta que Hernandez é melhor do que ele na cama. Escuta que ele é um egoísta. Escuta que ele fingiu amá-la e só depois revelou sua falta de caráter. Escuta que ele a faz sofrer. Escuta que ele a humilha. Escuta que ela o detesta e que o odeia e que chega a ter asco dele.
Sebastian cai novamente. E agora, se arrasta. Arrasta-se por entre os pedaços de sua vida, por entre estilhaços do seu próprio coração. Arrasta-se por uma lama fedorenta. E espíritos passam pisando sobre seu corpo. Espíritos que levam em seus rostos o rosto daquele pai ausente, daquele marido inconseqüente, daquele promotor intransigente. É como se ele estivesse pisando sobre si próprio, ajudando a afundá-lo naquele pântano.
Ele se afoga naqueles pensamentos horrendos. É levado pelas correntezas que bradam naquele esgoto. Perde, por um instante, a consciência e desperta aos berros.
Com medo de altura, acha-se à beira de um abismo. Com medo de envelhecer, ganha rugas e cabelos brancos. Com medo de escorpiões, há uma série deles ali. Escorpiões pretos e vermelhos que vão ferroando a sua alma.
Angústia, desespero, aflição.
Eis que aparece uma menina para lhe ajudar. É Susana. Ela o leva dali, tira-o do meio daqueles bichos. Está vestida com trapos sujos. No entanto, ao menos, ela apareceu para socorrê-lo. Ele a abraça e sente a pele da menina ficando áspera e fria. Ao encará-la, percebe que abraça um escorpião gigante. E aquele inseto o espreme, o amedronta, o envenena com o pior dos venenos: o medo.
Longe dali, Klaus e Franco lutam contra uma leva de umbralinos; Afrânio e Benjamin conseguem resgatar aquele socorrista que foram buscar e já partem para auxiliar os amigos; Alba e Ághata permanecem em oração, na planície das hortênsias, invocando luz para aquele grupo.
No entanto, são duramente repreendidas por Gabriel, que acabou descobrindo o resgate. Ele as adverte, diz que não deveriam ter se envolvido nesse caso que ainda não foi julgado por Deus. Uma discussão começa.
Outros espíritos são atraídos para ali. Miguel surge. Alda pede que ele parta em ajuda aos que estão no Umbral. Diz que sofreram um ataque. Mas Miguel se nega. Diz que não tem ordens para isso e que eles encontraram o que mereceram pelo atrevimento. Gabriel diz que elas também serão castigadas.
E, quando levanta sua fúria contra Agatha, uma luz azulada e intensa deixa todos estáticos. É a luz da Altíssima que chega acompanhada de anjos e virgens. Todos se ajoelham diante de Maria. Gabriel vai embora e Miguel o acompanha.
Palavra alguma é dita.
Por questões relacionadas a equilíbrio de mundos, Maria não pode ir ao Umbral. Por sua atitude já corre o risco de ser repreendida por Deus. Depois de impedir que um arcanjo tombasse uma de suas servas e comprometesse de vez aquela missão, ela se vai, deixando um rastro de perfume e luz no ar. Um perfume de flor. Uma luz forte e acalentadora.
Alda e Agatha, fortalecidas pela presença da Mãe das Mães, continuam concentradas. E outros espíritos que apareceram ali, agora também a acompanham. No entanto, ninguém, de espiritualidade mais elevada, atreve-se a ir ao Umbral.
Esteban quer se aventurar com Giulia e outros, mas são impedidos por Alda. É preciso confiar em quem está lá, mesmo com muitos já dão como certas as baixas. Espíritos despreparados para um socorro como este podem agravar ainda mais o contexto. É melhor esperar um pouco mais. A notícia de uma grande guerra envolvendo Klaus e seus companheiros se espalha pelos planos e subplanos.
Naquela caverna sem fim, Sebastian continua seus dramas. Agora, é hora de rever todos os castigos que sofreu nos últimos tempos. E todos esses castigos são atribuídos a Jhaver. O intuito é fazer com que ele desista daquele resgate e, mais, que tenha ódio pelo anjo negro.
Ele vai se deparando com suas quedas no trabalho, em casa, em seu casamento. Ele revê as humilhações que passou com padre Mariano e irmã Ruth... Ele se vê desmoralizado, fracassado, cansado de tantos castigos. Ele vê Gastón morrendo em seus braços. Ele vê seu filho morto sobre a mesa do necrotério. Ele vê seus pais tripudiando de sua dor. Ele vê outros promotores apunhalando suas costas, sedentos para ocupar seu lugar. Ele vê São Miguel lhe negando socorro.
Ele, pela primeira vez, vê Jhaver. É mais uma imagem projetada naquele universo astral. No entanto, é a primeira vez que conhece, de forma oficial, o rosto de seu castigador. Lembra-se daquele homem que viu na igreja no dia da formatura de Micaela e da figura que encontrou em espelhos, copos d’água, pesadelos e no fundo da própria retina.
Vê um anjo negro com um chicote nas mãos. Asas acinzentadas. Olhos de pedra. Corpo alto e imponente. Semblante fechado. Uma túnica cinzenta.
Num certo momento, aquela criatura tida como o senhor dos castigos levanta sua arma contra Sebastian e o chicoteia. Chicoteia-o sem piedade ou compaixão. Chicoteia-a com prazer. Chicoteia-o de forma raivosa. Chicoteia-o entre risos que não são dele.
Risos que brotam do chão, que vertem das paredes, que explodem das pedras. Risos sarcásticos, irônicos, macabros.
Sem remédio, Sebastian vai sentindo aquelas dores, por tempos a fio, numa guerra psicológica fora da compreensão humana.
Caminha por entre choro e ranger de dentes.
Sem dúvida alguma, aquele lugar, perdido entre o espaço físico e mental, é muito pior do que o inferno dos católicos. Aquele que Sebastian aprendeu a temer desde criança. O inferno que amedrontava os meninos da catequese. O inferno que impede os homens de fazerem tudo o que desejam.
Ali, fogo e enxofre se manifestam de diversas formas. O fogo é a angústia que queima. É a culpa que arde. É o remorso que incendeia. O enxofre é o cheiro do amor que não se tem. É o cheiro do medo. É cheiro do suor, da lágrima, da morte.
Mesmo caminhando em um plano astral, é como se Sebastian estivesse caminhando dentro de sua mente.
Ali, é alvejado por sofrimentos físicos e morais. Ora sente um frio incontrolável, ora é acometido por um calor incompreensível.
É tomado pela vergonha de se ver incapaz de ocultar suas fraquezas e desejos mais íntimos. E ele tem vontade de chorar, de correr, de começar tudo outra vez. No entanto, não pode. Está amarrado àquela vida, àquela história, àquela sina.
Ele ganha as vestes de promotor se vê diante da sua falta de misericórdia com seus acusados. O chicote agora está em suas mãos. E ele chicoteia cada uma daquelas pessoas que lhe imploram por liberdade, por inocência, por clemência. Por conseqüência, chicoteia pessoas que ama. E chicoteia a si próprio, autoflagelando-se.
Os umbralinos querem que ele se sinta castigador. E é assim que se sente, ganhando as armas e trajes de Jhaver.
Os espíritos de luz previram que o resgate seria difícil, com muitas armadilhas. No entanto, ninguém sabe o que Sebastian encontrou para além daquela caverna.
Klaus, Franco, Benjamin e Afrânio estão tão perto quão longe do genro de Valentina, combatendo aqueles seres baixos na esperança de escoltar Jhaver e Sebastian de volta para casa.
Ao contrário de uma leva de umbralinos, o esposo de Malena se depara com o pior dos inimigos. Sua mente.
É sua mente o seu principal demônio.
São tantos buracos e caminhos sinuosos. É como se ele caminhasse em círculos. E quanto mais voltas desse, a situação piorava um pouco mais.
É preciso derrotar a si próprio para escapar daqueles labirintos do Umbral e alcançar seu propósito: Jhaver. É preciso se concentrar. No entanto, ele está perdido em pensamentos e sensações que podem fazê-lo fracassar mais uma vez.
Ninguém pode ajudá-lo. É uma batalha tão particular quão necessária para sua evolução e salvação.
Talvez Sebastian jamais consiga escapar da onda de castigos oriunda de seu mais novo castigador: ele próprio.
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