O Castigador
17/06/2010 - Capítulo 30
Sem saídaA boca de Sebastian, tão acostumada a passar horas a fio orquestrando palavras em um tribunal de júri, emudece. Os olhos baixos também não se expressam. Sempre tão firme e objetivo em suas decisões, o promotor cambaleia. De forma maquiavélica, Jhaver o colocou na condição de castigador. Independentemente de quem escolhesse, castigaria a todos. Seria para sempre lembrado como o carrasco dessa história.
A equipe médica aguarda a decisão daquele homem que, a partir de então, será acusado fria ou emocionalmente, não importa, de ter matado alguém. Não pode escolher mãe e filho. Não pode ceder sua vida para salvar outra. Não tem outras opções senão escolher entre a mulher que ama e a criança que é resultado deste amor. Por mais que pense e tente fugir, não existe outra saída.
Diante dos olhos apressados e pesados daqueles profissionais de jaleco branco, dos lábios de pedra de Sebastian brota um único nome:
- Malena.
Um dos enfermeiros volta à sala de cirurgia com o veredicto. O outro dá apoio ao pai que acaba de matar um filho. Pensa em sedá-lo, anestesiá-lo, interná-lo. Mas o promotor quer permanecer consciente. Se é que é possível ter consciência de algo. Mas precisa estar pelo menos acordado para tomar certos procedimentos, como avisar a família sobre o acontecido. Ninguém sabe nem em que hospital eles estão.
Será que Valentina acordou? Será que Hernández sobreviveu à queda? Será que Alicia continua se fazendo de vítima? Será que Micaela e Tomás conseguiram assimilar tudo o que viram? Será que Gastón continua caído no tapete de seu quarto? Será que Tita não se arrependeu? Será que a polícia, o resgate, o serviço funerário estão em sua casa?
Depois do sangue de Malena borrando o lençol, o promotor não viu mais nada. É como se o universo existente ao seu redor sumisse, ou melhor, fosse sugado por uma espécie de buraco negro. Está com medo de ligar e saber como estão às coisas por lá. Está com medo de informar as notícias daquele hospital. Está com medo de tornar pública sua escolha.
E sua escolha poderia não valer de nada. Pois o estado de saúde da mulher é bastante grave. Está inconsciente, com a pressão baixa e perdendo muito sangue. A equipe médica tem extrema dificuldade para conter a hemorragia.
Maldito Hernández. Matou Gastón, matou o bebê e poderia matar também Malena. É sabido que um choque na região das costas pode ser pior do que atingir diretamente a barriga. Por que tinha de acontecer isso depois de um domingo tão agradável? Castigo!
E esse sono inexplicável de Valentina e Malena? Ambas parecem ter sido dopadas. Se ele tivesse seguido o conselho do médium e ido esfriar a cabeça para voltar a conversar em um segundo momento, as coisas teriam sido diferente. Definitivamente, a culpa não é só de Hernández. Sebastian foi avisado muitas vezes de que não deveria ceder às tentações. Está sob prova constante.
A esta altura o delegado deve estar a sua procura. Querendo colher seu depoimento ou até mesmo prendê-lo. Nem Alicia, nem Tita, nem Tomás, nem Micaela teriam coragem de acusar Hernández. Todos apontariam Sebastian como o autor da morte de Gastón. Mesmo que o dançarino de tango tenha morrido, os filhos, a ex-cunhada e a empregada não vão querer sujar a imagem.
O respeitado e temido promotor agora está com medo, mantendo-se como foragido naquele hospital. Se Deus, realmente não fosse castigador, poderia dar uma prova de sua bondade salvando mãe e filho. Quem sabe se Giulia ou outro espírito de luz ajudasse os médicos que lá estão. Quem sabe não acontece um milagre.
O tempo parece não passar. Os pensamentos são confusos. Suas rezas soam embaralhadas. Andando de um lado para o outro, Sebastian conclui que o melhor é esperar o resultado de tudo para avisar os outros. Na verdade, encontra desculpas para adiar ao máximo seu encontro com o que sobrou de sua família. Se é que sobrou algo.
Mais do que nunca, está sozinho.
Pensamentos, indagações, preces.
O médico volta acompanhado de enfermeiros. O semblante fechado assusta. Ele se aproxima e, sem muito a dizer, balança a cabeça negativamente. Sebastian chora. Chora sem um abraço, sem uma palavra de consolo, sem uma esperança.
Sua mulher continua em coma, sob risco de morte, e o bebê nasceu morto. É o pai de um natimorto. Vários procedimentos foram executados, mas não deram resultado. Tentaram até o último segundo, mas a criança, de sete meses, ainda sem nome, não resistiu. E qualquer tentativa mais profunda de salvá-lo comprometeria ainda mais a vida da mãe.
Desconsolado, pede para ver a mulher e o filho. Malena ainda não pode receber visitas. Está sob intervenção médica. Já o bebê, tudo bem, poderia vê-lo. Perguntam se ele tem certeza de que é isso que realmente quer, pois não é uma visita fácil de ser feita. Porém, o promotor está decidido.
Veste roupas especiais e entra numa sala fria à meia luz. O corpo do filho, um tanto quanto arroxeado, denunciando a falta de oxigenação, paira nu, totalmente desprotegido, sobre a mesa.
Por tudo o que ocorreu nos últimos tempos, Sebastian se culpa por aquela morte e extravasa sua dor. Pega a criança no colo, abraça-a contra o peito, pede perdão, explica que fez isso por amor.
A enfermeira, mesmo com mais de 15 anos de profissão, não resiste e se deixa tomar por lágrimas.
Minutos depois, ela o retira dali sob o argumento de que o corpo precisa passar por exames para ser liberado para o enterro.
Ela leva Sebastian para tomar um café, quer lhe dar um calmante, mas ele não consegue, tampouco quer engolir nada. Está passado com os acontecimentos.
Pega o telefone e liga para casa. Quem atende é Valentina. Ao ouvir a voz da sogra, desliga. Não tem coragem de dizer nada.
Sebastian sai do hospital sob a desculpa de que precisa tomar providências referentes ao enterro do filho, mas, na verdade, quer fugir de si mesmo.
Quando vê, está dentro da igreja de São Miguel Arcanjo. O lugar onde cresceu acreditando num Deus miraculoso, amável, misericordioso. Lugar o qual um padre o proibiu de freqüentar. Quanta fé e devoção dispensadas aquele arcanjo que empunha uma espada e sufoca com os pés o demônio. Quanta confiança...
- São Miguel, eis aqui um assassino confesso. Acabei de matar meu filho. Meu filho que é carne da minha carne, sangue do meu sangue. Ele não pode falar nada para se defender. Ele não conseguiu sequer lutar para impedir a própria morte. Eu tanto pedi que sua espada me ceifasse antes que eu pudesse fazer tal escolha, mas pelo visto não sou merecedor de sua interseção.
- Sou um nada. Um verme. Um condenado. Um pecador. Sou pior do que esse dragão que tomba em seus pés. Por minha culpa, minha tão grande culpa, a mulher que eu amo está entre a vida e a morte. Também por minha causa, Gastón, um homem que muito me ajudou, está morto. Quem mais irá pagar por meus castigos. Quem mais?
- Meu casamento, que eu tanto consagrei aos teus cuidados, acabou. Malena, que não acredita em mim, não irá me perdoar. Nem ela nem Micalea nem Tomás nem Valentina. Minha carreira está arruinada. Fui desmoralizado por uma sucessão de escândalos. Meus pais só pensam em dinheiro. O filho que eu tanto esperei para carregar nos braços no desejo de que um dia, com orgulho de tudo o que fui, pudesse me levar pelo braço... Ai... Como é difícil...
- O que restou de mim? O que restou para mim? O que me reservam os planos de Deus?
- Miguel, será que Deus existe? Eu que sempre duvidei da face castigadora de Deus agora provo amargamente sua existência. E você, Miguel, quem é você? Se Jhaver se assume ser um soldado de Deus, quem é você Miguel? Quem é você que não me escuta, que não faz nada, que me deixa nessa situação?
- Miguel, Miguel, onde está? Por que não colocou sobre Malena e meu filho sua armadura? Por que não os protegeu com seu escudo? Quando eu mais precisei de você fui abandonado. O que fiz de tão grave para provar tamanho dissabor? Quer saber, São Miguel, você é uma fraude. Você está do lado deles. Deles, os castigadores.
- Mas eu não vou deixar que engane mais ninguém.
Sebastian parte em direção ao altar, pega a armação de ferro que sustenta uma vela, e segue em direção ao santo. Quando levanta aquela barra de ferro, com o desejo de quebrar aquela imagem, sente uma dor imensa no braço. É como se algo o segurasse, o apertasse, o dominasse.
Sem forças para levantar o braço direito ou segurar a arma, o ferro cai ao chão.
Ele tenta de novo, mas o braço perde o movimento, fica como que morto.
O padre, vendo aquela cena de vandalismo, chama por um guarda que passa por aquelas imediações.
Padre Mariano aponta para Sebastian dizendo que ele é um vândalo, que atenta contra Deus e o patrimônio da Igreja, que não o conhece. Com forte dor no braço e violentado pelos últimos episódios de seu cotidiano, o promotor se deixa conduzir, sem resistência, à delegacia.
Quando fala com o delegado e explica sua situação, este aproveita para tomar seu depoimento e avisar a família. Sebastian implora para ser preso, diz que matou seu filho, que matou sua mulher, que matou seu amigo, que se matou. Fala que fez tudo isso por conta de um espírito que o castiga de forma impiedosa.
O policial observa que aquele homem precisa de cuidados médicos. Não pode ficar sozinho pelas ruas. Assusta-se em ver que o honrado promotor se transformou naquele farrapo humano.
Valentina chega sozinha e sonolenta à delegacia, os dois se abraçam e choram sem dizer uma só palavra.
Observação do autor: Próximo capítulo: 22/6 (terça-feira). Até breve!
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