Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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22/06/2010 - Capítulo 31

É preciso ter força, é preciso coragem.

No plano superior, em um dos degraus de uma espécie de montanha desértica em meio a um profundo fundo turquesa, Jhaver, de asas abertas, testemunha os últimos acontecimentos. Dali, também acompanha, mentalmente, o que dizem e pensam outros anjos. E, segundo as falas, a briga de Sebastian com Hernández, o fato de ele ter duvidado da fidelidade de Malena e sua atitude de tentar quebrar a imagem de São Miguel em um altar de igreja indicam que ele não teve a evolução espiritual esperada e, portanto, merece os castigos.

Se ainda havia qualquer dúvida nisso tudo o gesto de ter decidido entre a vida da mulher e do filho leva o promotor direto ao umbral. Sebastian não tinha autoridade para interferir nos planos celestiais. Tinha de, simplesmente, ter entregado o futuro de Malena e da criança que ela levava em seu ventre às mãos de Deus. Tinha de ter confiado cegamente e aceitado, sem reclame algum, a vontade divina. E estava decidido que chegara a hora de Malena.

Como parte do processo de aprendizado proposto a Sebastian, ela deveria morrer e dar a luz àquela criança. Porém, o promotor impediu que isso ocorresse. Depois de todos os contratempos, de todas as brigas, de sua desconfiança relativa à traição, ele deveria ter salvado o filho. Mas não. Sua atitude, demonstrando um amor descabido, ainda possibilitou que espíritos de luz intercedessem em prol de Malena. Eles mantêm-na viva. Agora, além de Sebastian, muitos outros, inclusive espíritos iluminados, merecem castigos.

Sendo assim, está na hora de Jhaver assumir o seu papel e não poupar ninguém. O chicote do anjo castigador poderia terminar com Sebastian e aqueles que insistem em poupá-lo. Depois dos últimos feitos, sua passagem para o umbral já está garantida. Agora, resta a Jhaver decidir se antecipa a ida do promotor ao plano inferior ou se continua fazendo com que ele viva o inferno na terra. Quanto aos espíritos iluminados que desobedeceram as ordens de se manter afastados decidindo lutar pela vida de Malena, estes receberão punições como retirada de poderes, ao exílio, à prestação de serviços inferiores e à reencarnação.

Jhaver precisa pensar como proceder. Enquanto muitos rezam pedindo a misericórdia divina, Deus deixa nas mãos de seu principal anjo castigador o futuro de muitos. Deus ama e castiga. Servo desse Deus, Jhaver tem que fazer valer a confiança que é depositada nele. Afinal, o "serviço sujo" fica por sua conta. Nem bom nem mal, apenas um instrumento nesse complexo sistema de hierarquias e regras chamado Céu.

Dali, da montanha do silêncio, local que os espíritos mais elevados buscam para reflexão, Jhaver pensa em seus próximos passos. Acompanha a luta de espíritos de luz, como Giulia, na tentativa de salvar Malena. Observa o esmorecimento de seu Esteban com os últimos acontecimentos. Assiste os desdobramentos da chegada de Gastón e da não reencarnação de Diego. Examina Sebastian fechando o caixão do filho que nasceu e morreu sem nome.

O promotor foi o único que teve coragem para velar, durante as poucas horas permitidas, o corpo daquela criança. Chora diante dos olhos fechados daquele que jamais saberia a cor dos olhos. O caixão branco, o menino trajando uma saída de hospital branca, rodeado e coberto por pétalas brancas. Sebastian toca o menino, abraça aquele lenho, fala sozinho em meio a tantas e significativas ausências.

Malena segue em coma. Valentina, medicada, está em casa com Tomás. Micaela faz companhia para a tia no hospital. Os pais de Sebastian não quiseram interromper uma viagem. Os colegas de serviço também não apareceram. Ninguém mandou sequer uma coroa de flores. Nem mesmo fotógrafos e jornalistas ousaram pisar ali. Ali, naquele salão fúnebre, só Sebastian, o caixão e Diego, que ganhou autorização para descer ao plano terrestre por alguns instantes.

O pequenino agarra-se à perna de Sebastian, sobe em seu colo, tenta consolá-lo. Uma cena doída de se ver e de se entender: para que tudo aquilo? Quem pode responder, cala-se. Jhaver não diz uma só palavra, tampouco expressa um sentimento sequer. Seu Klaus, que havia conduzido Diego até ali, também fica em silêncio. E é também emudecido que o pai daquela criança acompanha os agentes funerários fecharem aquele caixão.

E é um desses agentes, também sem nome conhecido, que pega em uma das alças do caixão e ajuda Sebastian a levar a urna. Eles não podem ver, mas seu Klaus e Esteban, que apareceu contrariando as normas, pegam nas outras alças engrossando o cortejo. Diego vai à frente, carregando uma rosa branca. Uma rosa que, mais tarde, jogaria em cima daquele corpo que seria seu.

Enquanto uma pá solitária lança terra sobre o caixão, Sebastian rompe o silêncio e canta, com voz desafinada e forte, uma canção de ninar. Que seu filho, tão sonhado e querido, durma em paz. Naquele fim de manhã, enterra um pouco de si naquela cova rasa. Esteban abraça o neto, Diego enxuga suas lágrimas e seu Klaus coloca a mão em seu ombro.

É preciso ter força, é preciso coragem. Todos aqueles gestos estão sob a mira do olhar atento e fixo de Jhaver.

Cumprida a missão de pai, parte para o hospital. Precisa saber notícias da mulher. Ao chegar à maternidade, Micaela abraça a tia e o expulsa dali. O acusa, o condena, o ataca. Para ela, o padrasto matou a todos. Ele finge que não a escuta, embora aquelas palavras o devorem por dentro, e sai à procura de alguma informação. O estado de Malena continua grave. Prossegue em coma. Ao menos, não precisou sepultar o filho.

Sob a fúria de Micaela e o cinismo de Alicia, Sebastian deixa o hospital. Vai para o seu apartamento, toma um banho, troca de roupa (havia deixado algumas peças do tempo que morava ali) e segue para o velório de Gastón. Uma grande movimentação na frente da casa. Familiares, amigos e freqüentadores do centro espírita. Entra cabisbaixo, como se fosse o próprio assassino, esperando ser alvejado por novas acusações.

Quem esperava ser recebido com pedradas e punhaladas ganhou um forte e demorado abraço de Celeste, a filha mais nova de Gastón. A viúva e os outros filhos também o abraçam em meio a palavras bonitas. Conheceram-se no almoço beneficente. O médium fez questão de apresentar o mais novo pupilo a sua família antes de o domingo, de conversas agradáveis e risos, ser transformado em pranto.

Rodeado de flores amarelas, Gastón tem uma fisionomia serena. Embora morto bruscamente, ostenta uma leveza em seus traços. Depois de seguidos golpes, Sebastian não agüenta, passa mal, precisa ser levado dali. Acomodado em um sofá, Celeste lhe traz um copo com água. Diz que está muito triste com a morte do pai, que perdeu um amigo e um exemplo de vida, mas que ele cumpriu com honradez sua missão.

Nos últimos dias, fez questão de viver ainda mais intensamente sua relação afetiva com ela, sua mãe e seus irmãos. Leu muito sobre a passagem para eles e, em sua última palestra no centro, falou sobre a importância de saber aceitar a morte. Para ela, o pai já tinha recebido o aviso de que iria morrer e, por isso, foi se despedindo dos que ficariam à medida que os confortava. Sua insistência em realizar aquele almoço beneficente não foi à toa. Tudo teve um propósito.

Sebastian pergunta se ela não tem raiva dele, afinal foi por sua causa que Gastón morreu. Celeste segura em suas mãos e o fazendo encarar seus olhos azulados diz que não. Explica que Deus age, muitas vezes, pelas mãos alheias. Aquela menina, de vinte e poucos anos, dá uma aula de aceitação e equilíbrio. Definitivamente, o promotor ainda tem muito a aprender.

Celeste havia nascido e crescido em meio ao kardecismo. Participou, desde crianças, das atividades doutrinárias e sociais do pai. Embora fosse caçula, tinha a força e a determinação de seu Gastón. Tanto que seus irmãos homens, todos mais velhos, estavam mais desolados do que ela. É como se a menina tivesse uma mão que a sustentasse. A mão de seu pai. E soubesse que ele continuaria para sempre ao seu lado.

O promotor pergunta por Augustin. Conta que o médium, pouco antes de morrer, pediu que procurasse por esse Augustin. Ela diz que não conhece ninguém com esse nome. Mas que iria procurar saber. Com o desenrolar daquela conversa, Sebastian vai se sentindo mais sereno. Mais tarde saberia que o dom de Celeste é o de acalmar as pessoas a sua volta. Um dom que ela sabe desempenhar muito bem.

Nesse momento, Tomás, que acabara de chegar com Valentina, aproxima-se do padrasto e o avisa, esbaforido, que aquele homem negro o procurou e disse que aquilo não era coisa de seu chicote. Honrando sua palavra, como sempre o fez, tinha cumprido a prometida trégua. O menino fala isso e corre dizendo que vai brincar com seu irmão Diego, que está ali.

Observação do autor: Continuação deste romance dia 24/6 (quinta-feira), com a publicação do capítulo 32.


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