Daniel Campos

Prosas

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27/05/2016 - A nossa hortênsia floriu

A nossa hortênsia floriu. Floriu num azul que conheço bem. Para comemorar, fiz aquele doce de morango que tanto gosta. Depois de cantar para eu dormir e acordar, Chico Buarque já me disse que “Essa Pequena” já deixou de ser uma letra, para ser você. Mesmo sabendo que você não pode mais, ainda compro Sprite toda vez que vou ao mercado. E tudo é tão marcante que ainda vejo suas tatuagens tatuadas no lençol. Ainda vejo seu vulto brincado pelas paredes em noite de lua, e nas sem lua também. Ainda me pego comprando o que acho parecido com você para guardar para um dia, quem sabe, talvez... Uma espécie de enxoval. Vejo os seus desenhos, troquei de mal com o cinema, escrevo, leio e releio as nossas histórias. Tudo meio que se tornou uma memória em círculos, pois quanto mais caminho mais me encontro com você. Minha mala está sempre pronta para nossa viagem à praia a ponto de chegar a ver seu sorriso no mar. E já são tantas plantas que nossa casinha no campo praticamente se tornou realidade. Pego-me fazendo suas cruzadinhas, mas não consigo descobrir o real significado de tudo isso senão o amor. E saio escrevendo amor por todo canto. Pensei em criar uma gata e chamá-la de saudade, mas certamente ela iria embora de mim. Vou fundo no fundo do fundo, mas quando ouço sua voz eu volto ao mundo, mesmo sua voz já sendo só um eco, só um não. A nossa hortênsia floriu pela segunda vez e você não viu.


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A nossa missão

Hoje é domingo. Mas hoje é um domingo especial nesses mais de quinhentos anos de Pátria Brasil. Eu sei leitor, cada ser humano tem o seu domingo guardado na memória. Cada um tem as suas jovens tardes, manhãs ou noites de domingo. Cada um de nós guarda um prazer, um amor, um olhar de algum domingo. Entretanto, caro leitor, hoje é diferente. Hoje é um domingo onde o sonho pertence a todos.

Hoje, o dia, por si só, tem uma saudade. Quem não se lembra de Ayrton Senna? Quem não se lembra das corridas de domingo? Quem nunca torceu, sofreu, viveu Ayrton Senna aos domingos? Diante da tela da televisão, acima de qualquer coisa, éramos brasileiros. Quando Ayrton ia às pistas no domingo, o sonho era possível. É nesse plano coletivo que o domingo, hoje, pode se tornar um marco. Mais uma vez, somos brasileiros....
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25/03/2010 - A nova vida de Isabella

Se Deus existe e realmente existe, Isabella deve estar correndo por campos floridos junto a outras crianças desencarnadas. Hoje ela já consegue volitar por alguns instantes e até pular de nuvem em nuvem. Mas demorou até a menina de franjinha e olhos acastanhados conseguir vencer o medo de altura. Também, ter seu corpo jogado de seis andares não é um trauma fácil de esquecer. Os ferimentos, os hematomas e as dores foram, pouco a pouco, desaparecendo com o tratamento espiritual. Hoje, a pequena Isabella, embora de forma bastante tímida, já consegue sorrir. ...
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A nudez de um encanto

Noite. Noite qualquer. Embora noites tenham sempre algo que foge do qualquer. Calada, sem mais anunciações, surge a lua. Surge sozinha em si e sem ninguém por perto. Surge nua, simplesmente lua. Lua nua lua, rimas perfeitas. Se surgisse cheia de enfeites talvez não tivesse graça e, sobretudo, mistério. A nudez da lua é a nudez a ser perseguida pelas criaturas femininas. Lua que surge com o corpo despojado (inteiramente nua) e passa coberta de lembranças, profecias, mistérios. Enfim, coberta com sua própria nudez. ...
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08/08/2008 - A Olimpíada é aqui

Lula está na China para assistir a abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, que acontece hoje. Ora, ora, caro presidente, não é preciso ir tão longe para testemunhar uma Olimpíada. Por aqui, há muito brasileiro quebrando recorde nos 100 metros rasos para fugir de ladrão. E no toma lá dá cá, há muito bandido fazendo ótimos tempos nos 200 metros com barreira para fugir da polícia. O que tem de gente aqui e ali praticando tiro não está no gibi. Só está faltando Robyn Hood para competir no arco e flecha, afinal os ricos continuam mais ricos. ...
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07/11/2015 - A parte pode ser o todo

Se o rio encher, transborda. Se o olho crescer, vira olho-gordo. Se a banana viçar demais, empedra. Se o ciúme passar dos limites, sufoca. Se a música se alongar, cansa. Se o doce passar do ponto, açucara. Se o medo ganhar asas, vira pânico. Se o choro for além, alaga a alma. Se colocar muito limão, azeda. Se a cruz dobrar, não se pode carregar. Se abusar do ouro, passa-se de chique à brega. Se o sono for mais que o bastante, a vida passa. Se fritar um minuto a mais, queima. Se mais pensar do que escrever, perde o poema. Se a poda for severa, mata. Tudo nesta vida tem a sua conta, a sua medida, a sua receita. O segredo está em sabermos a hora exata de parar isso ou aquilo para que fiquemos com o melhor de cada coisa, de cada pessoa. Nem sempre mais é o melhor. Precisamos saber dosar para que a nossa insaciedade não ponha a perder o perfeito está. Se o sabiá tivesse três asas ou dois bicos não iria voar ou cantar melhor ou mais bonito do que já canta. Encanta-se com o fato de que a parte pode ser o todo, eis a arte.


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10/04/2008 - A poesia corre em linfas

Ser casado com esteticista é, como se diz por ai, tudo de bom. Recentemente, minha bem-amada além de advogar e assessorar um parlamentar decidiu abrir uma clínica de estética. E melhor, resolveu fazer cursos e mais cursos para se tornar esteticista. Mesmo sem ter cabelos brancos e olhos vermelhos, como os tradicionais ratinhos de laboratório, eu fui pego para cobaia.

Como grande incentivador de seu sonho adolescente, eu não tive como fugir dos experimentos. Lá fui eu - uma criatura que vive em estado absoluto de tensão durante boa parte das 24 horas - tentar entrar em alfa ou beta ou ômega ou em algum outro estágio de meditação por meio de suas mãos. Eis que com todo amor que há, mergulhei nos braços do desconhecido entre o verde e o vermelho da Quant`è Belle. Ah! Deixa-me explicar. Minha esposa tem um pé na terra da torre Eiffel, por isso o batismo da clínica foi na língua de Jean-Paul Sartre. Nacionalidades à parte, eu descobri que a poesia em nosso corpo, assim como nas árvores, corre em linfas....
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18/12/2008 - A política do dito pelo não dito

Palavra dada deve ser cumprida a qualquer custo. Eis um legado que forjei junto ao meu avô em anos de convivência. Cumprir o que foi dito é mais do que uma obrigação, é um motivo de honra. Se eu digo que vou estar em algum lugar tal horário, pode ter certeza de que estarei lá minutos antes, vivo ou morto. Se eu digo que vou fazer algo, fá-lo-ei nem que isso me prejudique por inteiro. Assinaturas, fiadores, gravações não têm o mesmo valor de uma palavra empenhada. No entanto, nesse caos chamado sociedade moderna, o que impera mesmo é a política do dito pelo não dito....
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27/01/2017 - A porta que importa

Volta e meia alguém me pergunta: devo lutar por quem amo? A minha resposta é sempre a seguinte: sim, mas lute até o necessário. Ah?! Quanto é esse necessário? Essa medida está na consciência de cada um. Eu mesmo já passei do ponto nessas lutas por amores não correspondidos e só me prejudiquei. Por muitas vezes, ignorei minha intuição, insisti além da conta, perdi muito e por muito pouco não morri. Se você cozinha demais o brigadeiro vai queimar ou açucarar. Portanto, tudo tem o seu ponto, isto é, a hora certa de parar....
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27/08/2014 - A primeira de muitas quartas sem Dona Ofélia

Quarta-feira. Justamente no dia em que a senhora se sentava sempre no terceiro banco da direita da igreja com sua garrafinha de água e seu leque para acompanhar a Novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Hoje, os sinos da Matriz de São José estão se dobrando mais tristes. Dificilmente a gente se encontrava às quartas-feiras, justamente porque era o dia dedicado pela senhora à prática de um dos compromissos mais importantes que tinha com sua fé. Gostava de chegar cedo à igreja para participar da reza dos mistérios do terço. Perdi a conta de quantas vezes vi aquele terço de caroços de azeitona enrolados na sua mão. Quando criança, a senhora me benzia passando o terço três vezes pelo meu corpo. Desajeitado como sou, o terço volta e meia enroscava em meus pés. Fui crescendo, crescendo, crescendo até que fcou impossível eu passar dentro do seu terço. Mas a senhora continuou me benzendo pessoalmente ou à distância até que eu mesmo desse conta de lidar com minhas energias. A católica que acreditava em vida após a morte e reencarnação ficou orgulhosa deste neto aqui ter encontrado seu caminho espiritual e ter começado a trabalhar espiritualmente para o bem dos outros como ela sempre o fez. Desde seu AVC no finalzinho da última semana tenho procurado retribuir toda a dedicação que sempre teve para comigo, manipulando energias para que pudesse continuar sua jornada em busca da evolução do espírito. Dediquei e dedico muitas preces e mantras em favor da iluminação de seus caminhos. Não é fácil se desapegar da matéria, como conversei mentalmente com a senhora nesta última madrugada, mas é necessário ter a consciência de que a missão foi cumprida dando continuidade a nossa caminhada em outros planos. Por mais difícil é preciso praticar o desapego seja com nosso corpo físico seja com pessoas que amamos para podermos seguir o que nos é confiado. Não foi por acaso que nossas últimas conversas foram marcadas pelo assunto “morte”. E agradeço muito de a senhora, minha vó, ter confiado a mim parte da sua preparação para passar por esse desencarne. Foram longas e ricas conversas. E foi uma honra poder aconselhar quem passou a vida dando conselhos. Para além das cores e sabores que vivi com a senhora, guardo comigo esse mundo espiritual que dividimos de forma muito bonita nos últimos tempos. A felicidade de me ver encontrado e fortalecido espiritualmente me fez muito bem. Afinal, sempre admirei muito a sensibilidade que a senhora sempre demonstrou em diversos campos da vida, principalmente em relação à arte. Seja a arte de cozinhar, de bordar, de plantar, de viver a literatura, em especial a minha poesia, e de encarar e praticar a fé. Estou de luto sim, mas hoje não visto preto. Visto branco. Afinal, para além do choro da nossa separação neste plano físico, celebro a beleza de uma passagem sem sofrimento como a senhora sempre desejou. Nada de ficar numa cama, de dar trabalho a ninguém, de perder sua independência. A senhora, dentro de sua simplicidade, sempre foi uma mulher à frente do seu tempo. Está certo que a vida nunca lhe deu muitas oportunidades de a senhora realizar seus sonhos, mas seu modo de pensar e agir foram coerentes com sua natureza sonhadora. Nunca vou me esquecer das suas mãos envolvidas por aquele terço que hoje provavelmente estará mais uma vez junto delas, só que já sem vida, em sua despedida. E por falar em mãos, de mãos espalmadas ao tempo, envio a energia deste que por muitas vezes foi mais que neto, foi filho, em agradecimento e auxílio à jornada de seu espírito. Nem nesta nem em outras quartas vamos mais nos encontrar fisicamente, mas tanto eu quanto a senhora sabemos que há outras formas de continuarmos juntos. E como a senhora já se despedia de mim ao telefone: Salve Deus!


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