Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 125 de 320.

18/07/2008 - Eu tenho medo da justiça

Eu tenho medo da justiça em que um bandido diz dar um jeitinho. Eu tenho medo da justiça em que um ladrão diz confiar. Eu tenho medo da justiça que vende liberdade. Eu tenho medo da justiça que só tem um dos olhos vendados. Eu tenho medo da justiça que se vale da injustiça. Eu tenho medo da justiça que deixa roubar. Eu tenho medo da justiça que influencia. Eu tenho medo da justiça que tange os próprios interesses. Eu tenho medo da justiça que ameaça. Eu tenho medo da justiça que esconde. Eu tenho medo da justiça que guarda um habeas corpus na manga para seus compadres....
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21/06/2015 - Eu todo

Do outro lado de mim há mais de mim que eu possa imaginar. Sou pêndulo, espécie de barco ao mar, que com as ondas, tem sua carga de sonhos jogada pra lá ou cá. Se fosse pássaro, volta e meia, inclinar-me-ia para a direita e para a esquerda, para que o que há de sentimento de ambos os lados chegasse ao coração. Nem sempre o que sou é o meio, pois pendo de acordo com o que sinto, vejo, ouço. E devo confessar que ando sempre penso ao lado da emoção. Se quiser me conhecer realmente deve me olhar por todos os lados e me pegar como um todo não desprezando parte alguma. Deve levar em conta o inteiro de mim, pois há ilhas nesse continente que sou com amor extremamente concentrado que não pode ser ignorado.


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20/03/2016 - Eu voei

Arrumei a cama com uma colcha de retalhos dos sonhos que já tive e que hoje me esquentam nas noites mais frias. Enchi o bule de café para engolir as palavras que descem a seco pela minha garganta. Palavras que não quero engolir. Palavras que se remoem pela minha boca querendo fugir. Palavras que perderam a hora de serem ditas. Palavras benditas que se tornaram malditas, e que, mesmo bonitas, ninguém as repita. Coloquei o gosto da vida que ainda me resta no meio de um pão. E mastiguei o que ainda me sobra como um cantor mastiga a sua canção. A mesma canção que ele canta toda vez que sobe no palco como se fosse a sua oração. Abri minha janela, dei bom dia ao infinito do sol reluzindo pelas telhas de zinco, tendo a certeza que dois mais dois são cinco. Olhei as horas e mais uma vez veio a tristeza de ainda, de ainda não ser a minha hora. Liguei a TV, abri um livro, pensei em mim, em você, em nós, o que eu ainda vivo. Fui para frente do espelho e vi meu sorriso vermelho, em carne viva, numa sina de ser imenso sendo pequeno, de se ouvir de dentro para fora, de vir mesmo tendo de ir embora, de ser tantas vidas num só. Tirei o pó da estante, coloquei um disco para rodar, fechei os olhos e dancei com elefantes, como se eu fosse um menino gigante. Depois da dança, senti como se tivesse estrelas na língua, o sabor da esperança, peguei a colcha de retalhos dos sonhos que já tive e coloquei em minhas costas como se fosse asas, e pulei na imensidão desse oceano que veio quebrar suas ondas na minha janela. E eu juntei meus sonhos, amei-os como nunca, colei-os numa junta, e, por mais incrível que seja, veja, eu voei.


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09/05/2011 - Eu vou pra Aruanda

Eu vou lá para Aruanda, para Aruanda lá vou eu. Já tô encaminhado pelo meu babalalô. Mas antes vou tomar um banho com ervas maceradas. Abô. Agô. Licença que eu vou fazer uma entrega para os meus orixás. Amalá. Já comprei velas, comida, fitas, flores e bebida. Depois que eu sair do canzuá, vou pegar a estrada para Aruanda. Lá não tem espírito desencarnado viciado no mal. Mas por precaução, vou levar meu oxê, meu machado sagrado de Xangô.

Em busca do meu odu, destino meu, eu vou lá para Aruanda, para Aruanda lá vou eu. Vou de abadá, tocando um adjá. Vou tocando a sineta invocando os orixás. Vou batendo paô, de palma em palma despertando as energias. Vou fazer um ritual de Bori, oferecer minha cabeça ao orixá. Meu Eledá vai comigo, me guardando de todo e qualquer encosto. Já preparei a fundanga para fazer meu descarrego. A pólvora vai queimando num círculo de fogo, abrindo meu portal para Aruanda. ...
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22/10/2011 - Eu vou, eu vou

Vou entrar debaixo das cobertas e só sair na próxima estação. Vou hibernar ou abrir os olhos para mim. Vou pensar uma forma de revolucionar o mundo real. Vou traçar um plano para vencer os cavaleiros do apocalipse. Vou fazer um eclipse particular com meus sóis e minhas luas. Vou fazer questão de esquecer que do lado de fora haverá sempre um jornal, uma revista, um homem ou uma mulher ou ambos me querendo dizer algo de novo de novo e de novo.

Vou ficar no escuro com os meus medos e segredos. Vou cantar baixinho. Vou me alimentar de poemas e romances. Vou estar perto e, ao mesmo tempo, fora de alcance. Vou dançar como dançam os lobos em suas cavernas. Vou entrar em transe. Vou chamar pelos deuses egípcios, gregos, romanos, celtas, astecas, maias, hindus... Vou reescrever a história da humanidade. Vou compreender o movimento de cada músculo, o vôo de cada pensamento. ...
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06/12/2011 - Eu, cegonha

Como cegonha, vou voando e levando um amontoado de filhos presos em meu bico. Meus rebentos são feitos de palavras. São contos, são poemas, são crônicas, são romances que eu carrego comigo por onde for. Muitos se espalham pelo vento, chegando assim a olhares desconhecidos. Porém, ao primeiro assovio, eles já estão todos ao meu lado novamente. São narrativas crianças armando um berreiro. São versos meninos brincando de rimar. São sentimentos que nascem herdando as minhas asas e a minha vontade de voar cada vez mais alto. ...
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21/12/2010 - Eu, Nelson e Vinícius

Eu nasci em 1980. Eu nasci no mesmo ano em que perdi dois inspiradores, um poeta e um cronista. Eu nasci e um mês depois morria Vinícius de Moraes. Chorei sua morte enquanto minha mãe achava que chorava alguma cólica ou coisa parecida. Seis meses depois, morria Nelson Rodrigues. Difícil explicar certas coisas, mas, mesmo sem tê-los vivido pessoalmente, vivo-os pelo desenrolar dos meus dias numa busca desenfreada, numa paixão platônica, em sentidos e significados que nem Freud explica.
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21/07/2013 - Exatamente assim

Ouça o que a ternura tem para dizer, palavra por palavra. Brinque, sempre que possível ou impossível, com a intimidade. Peça perdão a todo instante para garantir uma absolvição antecipada. Espalhe palavras gostosas por terras que vão além de onde sua vista alcança. Respeite as particularidades do dia e da noite, curvando-se ao sol e entregando-se à lua. Tateei o medo até que ele – o medo – não sinta mais medo de você. Durante as tempestades, ofereça doses e mais doses de mansidão aos que chegam trazendo ventos, raios e trovões em suas falas e gestos. Faça dos restos de tantos eus o seu eu inteiro. ...
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27/09/2015 - Exitus

Eu não sabia o que queria, agora quero o que não sei. Eu ia e já não hei. Eu nunca fui de conversa, agora ando calado. Eu vou ao futuro e vejo o passado. Eu namoro a lua e ela não namora ninguém. Eu ando pelas estradas de sabe-se lá quem. Será de alguém? Eu aperto o passo e ponho rastro sobre rastro. Eu me volto ao espelho e não vejo nada. Quantos pássaros são precisos para fazer uma passarada? Tenho muitos cantando, voando, empoleirando em minhas árvores interiores. Eu semeio vento e colho flores. Há algo de errado. Não sei se sou eu ou se eu sou aquele que passou ao lado. Será que na noite todos os gatos são pardos? Se tudo é de Deus por que sou eu quem carrega esse fardo? Se nós nascemos e morremos sós por que fui me querer amado? Não sei mais qual é o meu livro de cabeceira. Até que momento minha paixão ainda se equilibrou inteira? Quanto de mim já entreguei à fogueira. Quantas vontades, fantasias, esperanças se sacrificaram por mim. Eram elas ou eu? E agora quem sou eu? Rei? Plebeu? Antes eu tinha sonho, hoje tenho sono. A quem pertence um cão sem dono? E toda vez que eu digo adeus é porque o começo se perdeu. E é no recomeço que me faço eu.


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05/08/2008 - Êxodo

O ar é seco. Desce rasgando pela garganta e maltrata o pulmão faminto. O vento, tal e qual quem não toma banho há semanas, corre sujo pelos céus. A poluição deixa de ser um índice científico e se transforma em um gosto indesejado em nossa boca. Ao contrário de água, a chuva é de fuligem. A popular "queimada" vai descendo dos céus e rabiscando nossos rostos e roupas de carvão. Os bois emagrecem nos pastos. O sertanejo chora diante da flor da seca que brota em espinhos na sua lavoura.

As matas ardem em fogo. Plantas e animais têm queimaduras de primeiro, terceiro, quinto graus. Os rios secam e expõe seu leito cheio de rachaduras. Os peixes, que ainda não aprenderam viver fora da água fria, morrem. Os pingüins não resistem e esquentam até morrer. O berro de fome da cabra mexe com os nervos da gente. A cada novo inverno seco, o mundo fica mais extinto de vida. A paisagem deixa de ser colorida e se colore em tons pastéis. A grama se desmancha em nosso caminhar. Tudo virá pó e a poeira dança em nosso caminho. ...
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