Daniel Campos

Prosas

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09/04/2016 - Estrada cigana

A minha estrada é rosa, azul e grená. Se ocê, bem cê, tiver o passo leve e doce, pode passar por cá. Tem sonho, esperança e desejo por todo canto, magia não vai te faltar. Só não venha com pé pesado pra desmanchar o encanto que há. A minha estrada é o acalanto, o meu lugar. Sou cigano e minha sina é caminhar. Sai ano entra ano e eu continuo a girar. O meu corpo é a agulha, a minha alma a linha e a minha estrada o linho. Borda, poeta borda o coração da menina... A minha estrada de amoração transborda e não termina. Na minha picada tem fogueira, dança, encontro e solidão. Abro caminhos que fogem da minha imaginação. Sou cigano de acertos e de enganos, e passo como as mãos apaixonadas passam pelas notas de um piano. A minha jornada é de sol e enluarada, se ocê, bem cê, tiver o passo firme de um sabiá, pode passar por cá. O meu lugar pode ser o seu despertar.


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08/04/2016 - Das pedras às estrelas

Hoje eu me sinto mais forte, tão forte que já nem penso na morte e no que há de vir entre o agora e o ponto final, que, na verdade é vírgula ou reticências. Hoje eu me sinto bem como há muito não sabia, pronto para encarar, lutar, superar. Hoje apartei-me do medo, de qualquer medo de viver, e estou pronto. Pronto para seguir em frente, para acontecer diferente, para fazer valer a pena. Hoje eu tenho em mim todo o sonho, todo o amor, toda a beleza, toda a vitalidade que cabem em um poema. Hoje eu sou de todo lugar e não sou de lugar algum. Hoje nenhuma corrente me prende, nenhum nó me ata, nenhum olhar enviesado me fere. Hoje eu estou para além dos limites, das metas, dos padrões. Hoje estou livre e assim me sinto por completo. Sou cada vez menos pedra, cada vez mais nuvem. Um dia, quiçá, não só sonharei, mas comungarei das estrelas que me alimentam, me guiam e me clareiam.


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07/04/2016 - Na casa do duque

Era um batuque. Era uma sinfonia. Era uma bagunça noite e dia. Na casa do duque era bem isso o que se fazia. Era Tião criando confusão. Era Ana caindo na cama. Era Clara catando feijão. Era Zequinha no acordeão. E Mariazinha no reco-reco. Bárbara ficava de xaveco com o coronel. E Beto botava a cuíca para gemer. Beatriz jurava que era feliz e queria porque queria fazer ali mesmo no sofá a sua lua de mel. Bia era gata e malicia. Era caso de polícia. Era um espaço de desejo, de antirealidade e de muito festejo. Tinha amor de toda idade. E, ali, beijo não tinha data de validade. O amor era tratado como samba, como muamba, como banda. E por mais que tudo fosse incerto, tudo dava certo, tudo era completo. Na casa do duque, muque não tinha vez. Ali a língua era o ovo de indez. A língua falada, a língua tocada, a língua trocada. Era uma quizomba, cada festa de arromba. Marinho queria Guiomar, que se enrabichava pros lados do Gaspar, que quando botava sua camisa cor-de-vinho falava aos ouvidos de Lia, que não sabia como disfarçar o seu amor por Guiomar, que deixava Marinho pelo caminho em nome desse amor desenfreado por Gaspar, que não se fazia de rogado e cego caía nos decotes de Lia, que tudo via e nada podia. Era um quiproquó que dava enredo, mas que muitas vezes morria ali em segredo. Era um batuque. Era uma sinfonia. Era uma bagunça noite e dia. Na casa do duque era bem isso o que se fazia.


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06/04/2016 - A zebra, a girafa e o leão

Era uma zebra, uma girafa e um leão pelas montanhas do Quintilhão. A zebra listrava por onde passava. A girafa espiava por cima das nuvens o mundo que a rodeava. E quando leão urrava nada ficava como estava.

A zebra aprontava e ria como se fosse hiena. A girafa era sentimental e gostava de poema. O leão, leonino como só, achava a vastidão de Quintilhão pequena e queria conquistar outras cenas.

A zebra só comia besteira. A girafa não ficava de bobeira. E o leão dava uma canseira. A zebra não levava nada a sério. A girafa era de outro império. E o leão, queria um grande cemitério. A zebra chorava de rir, a girava meditava antes de dormir e o leão devorava aqui e ali....
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05/04/2016 - Ligações

Eu cheguei e logo me apresentei às moças. Meus braços nasceram para os laços como os talheres para as louças. Sou como ponto em cruz, nervo remontado, galho entrelaçado, caminho cruzado. Nasci para ser par sendo ímpar. Sou a mão que une as cordas do violão. Sou olhares trocados, línguas emaranhadas, corpos misturados, sexos casados. Sou junção, fusão, imersão no coração alheio. Floreio, serpenteio, clareio num único desejo: ligar-me. Viver é a sina de ligar-se num apaixonamento sem fim. Ligar do verbo unir, do verbo acender, do verbo conectar. E o que é a paixão senão uma união, um clarão, uma conexão de tecidos, transcendentes, gemidos, sementes, desejos e ensejos compreensíveis ou não, possíveis ou não, porém, sempre incríveis. E quando me apresentei às moças, liguei-me a elas no ímpeto versejo da mulher amada tornando a vida nada insossa.


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04/04/2016 - Tô que tô

Hoje eu tô que tô. Ninguém me segura. Tô mais feliz que papai noel gritando hô-hô-hô. Hoje eu tô que tô. Tô quente, bonito, fervendo, querendo mais e mais de tudo isso. Hoje eu tô de reboliço. Hoje feitiço não me pega. Hoje nada de ruim me carrega. Hoje eu tô que tô. Atotô, atotô. Hoje eu tô nagô, enfrentando, quebrando, rolando as pedreiras de Xangô. Mais charmoso que canto de agogô. Mais cheiroso que fulô de laranjeira. Tô ioiô descendo ladeira, pulando ribanceira, dando canseira na iaiá. Hoje eu tô que tô, sinhô sem chororô, querendo amar no larara lararara larararaó. Atotô, atotô, ioô chegou. Hoje eu tô que tô, fazendo kizumba, desfazendo macumba, rompendo a tumba do faraó. Ó que dó de você, pois eu tô que tô girando o mundo, botando fundo, aproveitando cada segundo que deus me dá. Hoje tô todinho de iaiá. Hoje tô doidinho por iaiá. Hoje tô no caminho de iaiá. Hoje eu tô que tô bom de se apaixonar, no calor de me enviesar, num bate tambor de clarear e juntar os caminhos de quem não segue sozinho. Clareia, clareia, clareô. Atotô, atotô, me ama que eu tô, que eu tô que tô.


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03/04/2016 - Rei do coração

O rei passou por aqui, o rei bebeu por aqui, o rei espiou por ali e jogou sua coroa no mar. O rei não quis mais reinar. O rei deixou aposentos reais, riquezas e banquetes. Trocou tudo por um ramalhete vivo que o fez redivivo. Ela tinha olhos de matagal, e não pertencia às casas de Espalha, Catalunha ou Portugal. Ela não era de sangue azul, mas de sangue verde. Um sangue que vertia em seus olhos, em sua alma, em suas esperanças. E o rei perdeu a cabeça por essa criança. Abandonou mantos, cetros, mulheres, filhos, conselhos, exércitos, muralhas pelo coração. Tornou-se o amante de um amor que se vingou. O rei que tanto fez chorar, chorou. O rei que tanto traiu, foi traído pela própria ilusão. O rei que tanto mandou, obedeceu. E mesmo aos farrapos, o rei dizia valeu trocar a linhagem pela apaixonagem.


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02/04/2016 - Descrença

Nunca mais tive seu cheiro em meu corpo, tampouco seu tempero na minha boca. Tão pouco tive mais nada de você. Nem notícias, nem suas divagações e falações fictícias. Continuo sólido, você oca. Nunca mais tive seus desarvoramentos, seu coração afoito em minhas mãos. Meus problemas, dilemas, teoremas já não a interessam mais. Fiquei, como sempre estive, sozinho procurando cegamente o meu caminho. Não sabe mais por onde ando. É indiferente se eu acerto ou desando. De uma hora para outra, deu o fora, partiu, sumiu, deu no pé. Até ontem era minha mulher, hoje já não sei o que é. Da fé à descrença num piscar de olhos. Minhas crenças, seus óleos.


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01/04/2016 - Pro seu formigueiro

Segura no meu peito. Puxa meus cabelos. Se ajeita em mim do seu jeito. Dependura em meus braços. Fica perfeita na minha asa. Guia os meus passos para você. Suspira na minha lira. Mergulha no aquário dos meus olhos e se joga no meu eu. Nunca diga adeus. Parte meu ser em tantas partes até me carregar por inteiro, como formiga que leva mais dia menos dia uma árvore toda para dentro do seu formigueiro.


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31/03/2016 - Na devida medida

Abro um sorriso e tenho exatamente o que eu preciso. Não adianta sonhar e deitar a esperar o sonho chegar. É preciso levantar e caminhar rumo ao que se quer. Coloca juízo na sua cabeça. Nem nada cai do céu, nem nada rompe da terra se não houver trabalho. A estrada certa não é o atalho. O que seria do alho se não fosse a cebola, mas essa, como toda, mistura precisa se dar na exata medida. Por isso, para não ter enguiço, eu repito que toda receita, toda junção, todo feitiço precisa ser feito em suas devidas proporções. Cada encontro tem sua parcela de doação. Cada estrada precisa de duas mãos. Cada coração precisa de outro para se sentir completo. Nada seria certo se um dia já não tivesse sido errado. Não existiria o perto se não fosse o distante. Então, preste atenção no que está para além de um simples encontro com a certeza de que nada neste mundo está definitivamente pronto.


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