Daniel Campos

Prosas

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10/03/2015 - Esqueci-me

Esqueci-me de marcar meus poemas preferidos e hoje estou perdido dentre tantos versos. Esqueci-me de guardar minhas memórias em compartimentos à prova do tempo. Esqueci-me de listar os beijos que ainda tinha para dar. Esqueci-me de terminar de ler tantos livros que poderiam ter mudado muito em mim. Esqueci-me de dizer tantos eu te amos por vergonha ou medo ou simplesmente porque deixei para depois e o depois se foi. Esqueci-me de acompanhar as mudanças da fase da lua nos últimos anos. Esqueci-me de conversar com o vento e hoje ele está mais calado comigo. Esqueci-me de que o futuro se torna passado rápido demais. Esqueci-me de alimentar tantos sonhos acreditando que eles resistiriam ao passar da vida. Esqueci-me de olhar nos olhos do meu destino e fui tocando, tocando, tocando... Esqueci-me de que a felicidade é o agora, aliás, tudo o que sou e, o que importa e o que significa de fato é o agora. Esqueci-me de fazer minhas receitas prediletas obrigando-me ao arroz com feijão diário. Esqueci-me de que é preciso não só engolir, mas apreciar, degustar, descobrir novos sabores no velho prato. Esqueci-me de tentar ser pássaro ficando cada vez mais preso ao chão. Esqueci-me de esquecer tantas coisas inúteis, doloridas e pesadas que pesam desnecessariamente na bagagem. Esqueci-me de podar alguns medos que hoje são mais fortes do que eu. Esqueci-me de colocar para fora tanta coisa que hoje não quer mais sair. Esqueci-me de dançar mesmo que tropeçando nos próprios passos, de cantar mesmo que desafinado, de continuar encantado como menino. Esqueci-me de que a vida é muito mais do que aquilo que se vê, que se ouve, que se toca... Esqueci-me de que não existe infinito, eterno, para sempre se não houver o hoje. Esqueci-me de que o exato momento é único e mágico, a chave do nosso mundo.


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09/03/2015 - Caipirice de luto

Há alguns pés de vento que vêm para cumprir o destino. No mesmo sopro, o vento sertanejo levou Zé Rico e Inezita Barroso. Ambos são parte da minha infância e juventude. Os domingos no sítio ao som de Milionário e José Rico. Os domingos em casa ao ritmo de Viola Minha Viola. Antônio e Liberato, meus dois avôs, encantavam-se tanto com a música de Zé Rico quanto com a de Inezita. Pode parecer antiquado para aqueles que colocaram o sertanejo na universidade, mas não há nada mais atual e autêntico do que essa dupla caipira levada pelo vento de março. ...
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08/03/2015 - Almoço só

Ai meu amor, o almoço está pronto. Eu ainda ando tonto, mas fiz tudo o que você mais gosta. Nossa mesa está posta e seu lugar, vazio. Ai chega a me dar arrepio colocar seu prato e você me dar esse destrato. Sua ausência é corte em minha alma, é o desarvoramento que cala fundo na minha calma, é proeminência à morte. Ai meu amor eu preciso ser forte para engolir a minha solidão. Eu tenho catado esperança como se cata feijão. Eu ando procurando você pelos temperos, achando-a em cada cheiro. Comprei aquela louça que você sempre quis e fiz o cardápio para lhe fazer mais que feliz. Fiz suco para manchar seus lábios e num romantismo sábio estou pronto para dar a vida minha pouca na sua boca. Ai meu amor como é difícil conversar com você sem escutar sua voz, ser apenas eu ao contrário de sermos nós. Fiz a sobremesa inspirado em sua beleza que se reflete no espelho como a minha tristeza de ser tão só, de ser tão só, de ser tão só que a minha poesia queima e o meu dia vira pó.


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07/03/2015 - Noite no mato

Quando o sol se abaixa no meio da mata e a bicharada começa a silenciar. O verde escure, a lua se apruma e o rio corre bem mais devagar. A montanha azul some na bruma da noite e as estrelas como vagalumes começam a piscar. A reza é pro dia logo clarear porque nas sombras do prefácio ao prólogo da vida tudo pode tombar. O medo no coração de um rouxinol é proporcional ao apetite da onça que caminha em segredo. A caverna do urso morcego só fica de ponta-cabeça. A esperança se perde no meio do capinzal e nada é igual na batalha da sobrevivência. Cresça e pode perder o pescoço. Encolha-se e pode virar apenas o osso. Todo mundo está de olho em todo mundo. O estômago da noite cala lá no fundo.


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06/03/2015 - Pássaro passa

Pássaro que é pássaro nunca deixa de voar. Nem a idade nem a tempestade nem a saudade fazem-no desistir de amar o céu. O pássaro nasceu para ficar suspenso entre a nuvem e o chão. O medo jamais é maior que o ímpeto pelo voo. O pássaro sabe que o verbo que o rege é o passar. O pássaro passa. É folha ao vento. É suspiro, jamais lamento. É onda no mar do esquecimento. O pássaro nunca sabe quando completa seu voo, por isso sempre precisa bater asas em busca do seu destino. E destino de pássaro é em pleno ar. É como um remetente à procura do destinatário. Pássaro não é peixe de aquário. Pássaro é o livre, o liberto, o libertário. Pássaro é breve, mas se atreve a ser infinito a cada voo. O pássaro é a envergadura do traço divino. O pássaro é a abotoadura do tempo, é o dobrar do sino, é o espanto do menino. Pássaro é o traço do criador em movimento. Pássaro é o braço da saudade acenando para a manhã de ontem ao encontro do amanhã. ...
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05/03/2015 - Horários

Às sete horas eu quero um beijo. Às vinte e uma horas eu corro para você onde quer que esteja. Às treze horas você me enche de apetite. Às vinte e duas horas eu preciso de colo. Às três horas sou apenas sonho, o seu sonho. Às vinte horas eu voo longe. Ao meio dia eu me esqueço de mim. Às quinze horas faço uma pausa de tudo e todos para o amor. Às dezoito horas o trânsito não flui em mim. Às vinte e três horas eu dou espaço aos sussurros. Às nove horas eu busco os suspiros da arte. Às dezesseis horas eu sou invadido por cheiro de bolo daqueles de avó. À meia noite eu viro lobo para correr suas campinas ou uivar em seus ouvidos, conforme preferir.


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04/03/2015 - Um beijo em seu coração

Um beijo em seu coração não é um beijo qualquer. Um beijo em seu coração é um beijo no seu eu mulher. Um beijo em seu coração é verdade, é compatibilidade, é realidade muito mais que ilusão. Um beijo em seu coração vai além do desejo, muito além do prazer, é um infinito querer, querer-bem, querer-mais, querer-melhor, querer-feliz, querer-amor. Um beijo em seu coração é uma declaração de pureza, um voto que transcende a pele, um gesto de outra beleza. Um beijo em seu coração é um carinho completamente implícito, diferentemente explícito, totalmente lícito. Um beijo em seu coração é de um céu grená, de um doce ingá, de um ronronar angorá, de um voo sabiá. Um beijo em seu coração é de fora para dentro, de um sentimento que não aguento guardar só para mim, de um tempo lançado e sem fim. Um beijo em seu coração é algo reluzente, ardente, candente, inocente... Um beijo em seu coração não tem conotação de pecado, é um pensamento cruzado, casado, jurado, enamorado da ação. Um beijo em seu coração é rio que corre forte ao encontro do mar, junção de sul e norte, é vida acontecendo sem se importar com a morte. Um beijo em seu coração não tem sentido de posse, não cai de moda tampouco na vulgaridade, é anti-idade e não passa como tosse. Um beijo em seu coração é uma canção que sempre desperta quando a saudade aperta...


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03/03/2015 - Escrevendo e vivendo

Coloca seu nome junto ao meu para ver se combina. Escreva em seus cadernos de menina sua receita de felicidade. Rabisca corações em meu peito, pois corações nunca são demais. Soletre amor tantas vezes quiser ou puder aos meus ouvidos. Fala a língua dos meus sonhos. Romanceia o nosso romance. Versa e reversa o que nos faz bem. Transcreva o que está em sua cabeça para as minhas mãos. Passa a limpo suas verdades. Copia do horizonte as mensagens do por do sol. Lembra que o nosso destino não tem pauta. Não importa a caligrafia, mas o sentimento contido em cada letra. Una as pessoas que te fazem feliz como que unisse sílabas. Seja em prosa seja em verso supera o adverso. Não queira apenas que o final da sua ou da nossa história seja feliz, capriche no meio e embora o começo esteja distante é sempre tempo de recomeço.


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02/03/2015 - Chuvaredo

É água que corre é água que vai. É mato que cresce é semente que sai. É vida que brota é chuva que cai. É pedra que tomba é trovão que estronda. É vento que assovia é canto de cotovia. É nuvem carregada é estrada fechada. É trilha é filha é ilha é estrela de milha. É primavera é promessa de nova era. É amoreira é jabuticabeira é figueira é saudade mateira. É brisa doce é a ventania trouxe. É folha verde é menino na rede é onça com sede. É vestido molhado é beijo suado. É caminho sem porteira é menina fagueira. É tempo se formando é felicidade chegando é o amor se dando. É natureza é beleza é proeza do sabiá na galha do ingá. É cachoeira é clareira é poesia inteira. É boca lambuzada de cupuaçu é pio de jacu é voo de inhambu. É goiaba do campo é reza pro santo é o destino em canto. É um abraço bom é pé de bombom. É raiz se trançando é inseto feliz dançando. É o arvoredo em festa com o chuvaredo quebrando na testa.


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01/03/2015 - Deus-sol

O sol se esparrama como um balde de tinta sobre tudo e todos. Ninguém escapa do sol. Por mais que existam telhas ou folhas de árvore sobre nossas cabeças a ação do sol é inegável. O sol desbota, o sol floresce, o sol seca, o sol murcha, o sol alimenta, o sol mata, o sol envelhece, o sol desidrata, o sol aquece, o sol viça... O sol é sem dúvida alguma o mais paradoxal dos astros, fazendo bem e mal ao mesmo instante. Enquanto uns morrem outros nascem e até renascem sob seus efeitos. Os raios solares permitem o equilíbrio entre vida e morte, como se a mesma mão que desse tirasse. Enquanto muitos buscam o rosto de deus se esquecem de olhar para o sol. Para além de altares, o sol, generoso e impiedoso, está lá, em todas as suas faces. E quem consegue olhar para o sol? Ninguém fita diretamente o astro-rei. É luminosidade, claridade, intensidade além do que nossos olhos mortais podem absorver. Deus-sol? Pode ser...


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