Daniel Campos

Prosas

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19/02/2016 - Também vou por aí

Pra onde vão as abelhas quando as flores secam? Pra onde vão os elefantes quando estão desenganados por eles mesmos? Pra onde vão os cometas quando nossas vistas não mais os alcançam? Pra onde vão os peixes depois da correnteza? Pra onde vão as estrelas depois que elas apagam? Pra onde vão as crianças quando o corpo cresce? Pra onde vão as músicas quando o silêncio desce? Pra onde vão as formigas quando chega o concreto, o piso, o asfalto? Pra onde vão as águas depois da chuva? Pra onde vão os amores quando começa a reinar a solidão, a vontade de ficar sozinho, de trilhar só o seu caminho? Pra onde vão as preces depois que elas deixam a boca, a mente ou o coração? Pra onde vão as nuvens quando são esparramadas pelo vento? Pra onde vão os sonhos quando não são realizados, quando dão em nada, quando se desviam da nossa estrada? Eu não sei, não sei não, mas eu também vou por aí.


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18/02/2016 - Pitangueira

A pitangueira floriu na quadra inteira. O perfume da pitanga batia na varanda. E a vida me mostrava que tinha uma carta na manga. De repente, as abelhas ficaram vermelhas. Os marimbondos ficaram doces. O ar se avermelhou. O dia deu sabor a quem debaixo da pitangueira passou. Pitanga que cheira. Pitanga que não é feira, pois acaba no pé. Pitanga pra quem puder. Pitanga de ladeira, que quando desce leva quem quiser. Pitanga de Aruanda. Pitanga de fé. Pitanga que avermelha e adoça o coração de uma mulher. ...
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17/02/2016 - Desavisada

Olha meu bem o que você está fazendo; Eu já vou quase morrendo de tantas incertezas. Com um pé na lua e outro na soleira da sua janela, vou buscando respostas. Será que gosta de mim a ponto de subverter a ordem do princípio, meio e fim. Será que vai contra a natureza e as naturezas de cada um de nós para ir afrouxando os nós para nos ter mais pertos um do outro. Será que é capaz de amar entendendo que o amor junto é o amor solto. Será que as suas comédias vão rir das minhas tragédias? E onde estaremos nós quando a realidade nos descobrir, levando os nossos lençóis. Quantos degraus você é capaz de subir para chegar ao limite de um sentimento que já arranha o céu? Quanto é capaz de ir além, meu bem, por algo que não controla? Reveja o seu papel na minha vida, pois não quero amor como esmola. Dou bola para a despedida que aconteceu antes da chegada enquanto você olha tudo e não vê nada, como se a trajetória do mundo tivesse parada.


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16/02/2016 - De colherada, dona Geralda

Dona Geralda se esbalda num tacho de goiabada. Vai metendo a colher, raspando fundo no fundo do caldeirão. Dona Geralda enche a boca e se saciada diz que não. O que ela quer? O que ela quer é ser mulher de tacho, se afogar no doce, chorar quem não a trouxe carinho sem dar esculacho pelo caminho. Dona Geralda enche a colher e se faz mulher de calda que vai açucarando e atiçando o olhar. Dona Geralda sabe comer e rebolar. Quebra Dona Geralda e dá queda na meninada que não acompanha a sua colherada. Dona Geralda sobe no pé de goiaba e bota lenha num fogo que nunca acaba. Mexe para lá, mexe para cá, olha a goiabada debaixo da saia, na taia do tacho de Dona Geralda, por favor, é para comer de se lamber, comam com amor e lambam a colher do jeito que for.


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15/02/2016 - Bailarina do cotidiano

Ela bem chegou e tirou para o seu bem o seu sapato vermelho. Ela tão logo deitou ficou de joelhos na frente do espelho para agradecer a si mesma pelo que sonhou e alcançou os braços do seu amor. Ela chorou de alegria e se extasiou como há muito não fazia. Ela se lambuzou de satisfação e como quem marca um gol não coube em si de comemoração. E tirou a camisa e jogou à torcida que aplaudiu de pé o show daquela mulher. Ela engasgou com o coração na boca, mas desentalou de toda ilusão que já há deixava rouca. E então, antes do fim, ela se deitou como se fosse jardim de primavera florindo e se abrindo a uma nova era. E ela floriu como nunca se viu. E ela se abriu como rio que desagua nas águas do mar de abril. E ela queimou, suou e se iluminou como pavio de vela perfumada de donzela enluarada. E ela chorou quente e alucinadamente feito parafina e mais uma vez se fez menina, bailarina do cotidiano, entre acertos e enganos, entre apertos e fulanos que a apertam de um jeito que a fazem gostar e achar que o mundo é perfeito.


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14/02/2016 - Pra entrar na minha casa

Por favor, bate o pé para entrar na minha casa. É casa simples, mas de fé, e merece ser respeitada. Tira o barro e a poeira, bate o pé na soleira da porta, deixando pra fora o que não é de agradar. Pode vir com todo amor, com muita cor e até trazer um bocado de flor, até uma vitória régia, mas nada de inveja, de sentimento que aleija, de mesquinhez, de frieza, de indelicadeza, de sordidez... Tira, tira o peso, a culpa, as máscaras, para entrar na minha vida, no meu lugar, no meu aledá. Por favor, respeite a minha fé, bate o pé para entrar no que sou e aproveite, de coração aberto, o que dou.


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13/02/2016 - Comida pra todo lado

Hoje tem peixe frito no bar do Dito. Hoje tem galinha ensopada que amanhã será empada. Hoje tem tartalete de morango que não é pro bico do pivete. Hoje tem fricassê, iê-iê-iê e tango. Hoje tem camarão na barraca do Tião. Hoje tem picadinho numa colherada temperada de carinho. Hoje tem batucada e feijoada, torresminho com limão. Hoje tem quitute na venda da Ruth. Hoje tem sanduíche e boliche. Hoje tem farofa com frango no Isopor do Jango. Hoje tem pizza de mozarela saindo do forno da Gabriela. Hoje tem bacalhau com batata numa mesa farta. Hoje tem luau e espetinho de miau. Hoje tem pavê da Telê. Hoje tem lasanha e uma gente que se assanha. Hoje tem nhoque e pop-rock. Hoje tem polenta na chácara do seu Pimenta. Hoje tem piquenique organizado pela Judith. Hoje tem pastel em plena lua de mel. Hoje tem coxinha na festa da rainha. Hoje tem pernil assado pra celebrar um batizado. Hoje tem linguiça com vinagrete na laje da Beth. Hoje tem carne de panela de pressão e feijão preto no prato do João. Hoje tem surubim na rede do Joaquim. Hoje tem braseiro aceso no rancho do violeiro. Hoje tem comida pra todo lado e amor de bocado.


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12/02/2016 - Poetas de pedra

Ah eles chegaram e se apossaram do que eu sou. Foram pegando a minha vida, os meus amores, a minha lida e nada mais ficou como era... feito canteiro antes e depois da primavera. Ah eles chegaram e mudaram o meu destino. Eu, o menino, soltador de pipa, papagaio, maranhão, fazer de gol, lançador de pião, tive que ser o puxador de caminhos, o linho que recebe calado a linha, o galo que abandona a rinha. Deixei de ser moleque, pivete, para ser algo a mais que eu não sabia. E quando tudo se apagou outro dia se iluminou e eu me vi poesia. Ah eles os poemas chegaram e se apossaram do que eu sou. Foram me tomando e me fazendo amar de um jeito que eu não podia imaginar. E eu descobri, senti e vivi sentimentos tão novos, intensos, propensos à eternidade que eu em pouco tempo cai em outra realidade. E depois da queda em mim, levantei meio assim-assim e vaguei pela cidade dos poetas de pedra.


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11/02/2016 - Tudo é passado

Tudo é passado. O agora é o ontem anunciado. E o amanhã ainda não está criado, é só abstração. Meu amor, todo amor dispensado é passado. O hoje já está condenado a ser o que já foi. Oi, não chore pelo que vai ficar, pois tudo ficará. Oi, não ignore o passado, pois é lá que mora tudo o que fomos e ainda somos. O amanhã é só uma projeção. Então, como diz a canção, o ontem é o amanhã, que morre hoje. E não adianta implorar, brigar, soluçar, o tempo vem como um carcará, impiedoso e majestoso, e não aceita o nosso choramingar. Deixa de bobeira e se joga na ladeira e tudo o que puder aproveite como vier. Não se importe com o que ainda restará, mas em como você aproveitará o que o tempo mais cedo ou mais tarde levará. Eu aconselho como posso e assim eu digo, como amigo, nada é nosso. Se tudo não fosse emprestado, tudo o que fomos e o que ainda somos não ficaria no passado. ...
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10/02/2016 - A moça da maré

A moça chegou cruzando pernas causando barulho de quem derruba toda a louça. Chamou a atenção, olhares e agitação. Provocou inveja, raiva e a imaginação. As pernas da moça como dois veleiros cruzando seus ventos num mar manso e traiçoeiro ao mesmo instante. E os beberrões foram bebendo por aquelas pernas, fazendo delas suas tabernas. E os ingênuos foram descobrindo formas pela arquitetura das pernas como se fossem gênios. Es os incrédulos com seus mundos pequenos encontraram credos profundos beirando à loucura. E o céu ficou pequeno para aquelas pernas de siri, de garça, de cegonha, que se recolhe, se encolhe e se esgarça cheia de graça. E nessa movimentação, a maré enche e vaza, as ondas se agigantam, os mares da solidão cantam, e a imensidão extravasa.


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