Daniel Campos

Prosas

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31/08/2013 - Medo da carrocinha

De ponta de pé, ela abriu a porta do quarto e caminhou até a cama, que tinha a forma de cachorro. Sim, ela era apaixonada por esses seres que faziam au-au desde que engatinhava por entre os filhotes de beagles de Juju, que, já há sete anos por ali, sentia-se dona da casa. Esticou seus olhares de tom de canela por debaixo da cama, pelo interior do armário e pelos rodapés de seu quartinho que era guardado por bonecas.

Sim, toda vez que ela saia pedia para que aquelas criaturas de pano e de plástico tomassem conta do lugar não permitindo que o bicho-papão ou qualquer outra assombração colocasse os pés por ali. Não que ela não confiasse nas bonecas, mas precisava conferir se estava tudo bem seguro com seus próprios olhos. Feita a inspeção, pulou na cama que imitava uma pelagem de cachorro deitando num travesseiro que reproduzia a orelha de... um cachorro. ...
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06/02/2013 - Memórias

Memórias que vão formando tramas e caminhos ao longo de bordados com rendas, de chitas e trançados com fitas que vão fazendo a cabeça desta baiana de tantos pontos e arremates.

Como um bordado feito à mão e linha, no melhor estilo Richelieu, minhas páginas vão formando imagens de uma obra interior.

Memórias de trabalho, amor e fé. Memórias de feitos, atos e fatos. Memórias primárias, secundárias, terciárias. Memórias secretas e de porta-retratos.

Memórias de sentir, de pegar, de sonhar. Memórias de um tempo, de um espaço, de um sentimento. Memórias de tantas direções, de muitas feições. Memórias acesas, acordadas, revisitadas. ...
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10/05/2008 - Mendigos, doutores e Nerudas

Dormia no concreto barulhento dos viadutos, no ladrilho da estação do metrô, nas pedras da calçada que se espalham em feitio de ondas pelo caminho sem destino. Ele se chama doutor Raul de Medeiros Pontes de Alcântara Machado. Doutor? Medeiros Pontes de Alcântara Machado? Os boquiabertos que me desculpem, mas Raul é um dos quase dois por cento de brasileiros que se sentaram nos bancos de um curso superior e acabaram nos bancos da praça.

Foi parar na rua em razão de uma desilusão amorosa. A mulher que tanto amava foi embora sem dizer nada. Quando ele chegou em casa, depois de um dia exaustivo de trabalho no consultório médico, não viu mais as roupas, os perfumes, as jóias dela. Havia partido para sempre. Fez alguns telefonemas, inclusive para a polícia, mas nada. Havia sumido sem deixar rastros. Doutor Raul bebeu garrafas de uísque com pedras de gelo feitas de seu próprio choro. No outro dia, já não foi trabalhar. No outro dia, já não sabia o que fazer. No outro dia, decretou a própria morte....
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14/08/2014 - Menina de coração azul

Menina que dá cambalhota. Menina que faz suas molecagens. Menina cheia de princesices. Menina dos olhos de bosques. Menina que gosta de fruta no pé. Menina que ri de desenho animado. Menina que se joga na cama. Menina do beijo tuti-fruti. Menina do riso leve. Menina que se atreve. Menina dos biscoitos recheados e iogurte. Menina que ama e não diz. Menina de tantas cócegas. Menina que sonha o hoje. Menina sem pressa de viver. Menina dos olhares de lua cheia. Menina que rodopia sem se importar se vai cair ou não. Menina de intimidades à tona. Menina de tanto frescor. Menina sem frescura. Menina na rua, no carro, na cama. Menina que se espreguiça em abraços. Menina que (se) apaixona dormindo. Menina do sol. Menina que se lambuza. Menina que cruza as pernas em mim. Menina flor. Menina que se deixa conduzir. Menina translúcida. Menina que chama. Menina que pede colo para dormir. Menina que não é de fugir. Menina que expõe as cartas sem truques. Menina boneca. Menina moleca. Menina sapeca. Menina de coração azul.


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Menina de ipanema

Os óculos de sol pairados sobre o cabelo davam o tom de informalidade não só a quem os usasse, mas à paisagem como um todo. Havia mais guarda-sóis do que sol naquela falta de praia. Mesmo assim, os óculos de lentes arredondadas continuavam lá. Quem sabe escondessem olhos tão negros quanto eles ou um tom de oceano. Oceano que não havia ali. E se fosse negro, talvez cometas passassem por ali. E se oceano, ondas dariam outro ritmo àquela tarde recém-nascida.

Um ritmo que quando viesse nos afogaria e quando fosse embora, nos arrastaria. Bailaríamos feito netuno e iemanjá. No entanto, quando tudo parecia indicar moda praia, seus pés pisavam em sandálias de salto fino. Embora o verão acalorasse as cores, óculos, cabelos e sandálias pintavam-se de preto. Daquele jeito, ela não cairia na piscina nem debruçaria seu pouco decote na churrasqueira. Não falava, não jogava, não beijava, não dançava, não desmaiava. Embora nem por um segundo que fosse estava sozinha. ...
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06/07/2013 - Menina menininha

Menina menininha, durma com toda ternura para poder se teletransportar para o seu mundo mágico. Menina menininha, sonhe ser princesa, fada e até bailarina de asas nos pés. Menina menininha, como de flor em flor como um beija-flor. Menina menininha, converse, dance, cante com suas bonecas de olhos de botão. Menina menininha, chora pedindo colo, fazendo beicinho e exigindo carinho. Menina menininha, faça lambanças e cirandas com suas lembranças porque não existe passado quando se trata de infância....
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25/06/2014 - Menina que não cresceu

Alma rosa choque. Menina que não cresceu. Estrelas no teto. Pelúcias que conversam sobre você e eu. Mãos que não sabem dizer adeus. Príncipes encantados sob sua janela. Música alta. Choro quieto. Travesseiro embebido de segredos. Sonhos sustenidos. Pés beijados. Amores encantados. Liberdade sem tramela. Roupas de poesia. Vestidos de palavras. No lugar do sangue, corre lava. Rimas pela maquiagem. Intuição perfumada. Borrifos de ilusão. Cama soprada ao mar aberto. Coração em alta-voltagem. Desejo nada discreto. Par de asas. Pele em brasa. Unhas ousadas. Cabelos noturnos. Olhos gatunos que roubam o que bem querem. Prosa adocicada. Boneca animada. Medos que ferem. Sapatos e raptos. Braços e pernas em dobraduras. Costas para aportar depois da adrenalina. Maestrina das loucuras. Abraços em farturas. Carne dura bailando, rodando, dançando por um amor de menino e menina. Santa demônia. Tremores de prazer e querer tempo adentro. Insônia do bem. Noite no alto firmamento. Suores essenciais. Conjunções carnais. Signo de rapina. Alma rosa choque. Menina que não cresceu.


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05/12/2013 - Menina-flor

De repente, sem maiores explicações, apareceram flores no quarto da menininha, que se espantou, no bom sentido, com aquela floração inesperada. Na verdade, um vaso com duas hastes de orquídeas num lilás que chamava para si outros tons, provocando ilusões de cores. Ela não entendeu como o presente havia ido parar ali, mas acreditava ser coisa de algum príncipe desconhecido de um reino não menos impossível que o seu. Mas que importava saber isto ou aquilo quando o que ela mais queria era curtir por completo aquelas flores que chegavam a dizer encantos aos seus ouvidos de pérola. ...
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10/04/2013 - Menino partido

Desde nascido, o menino queria partir. Partir para fora do útero. Partir para além da bolsa. Partir nas mãos da velha parteira. Partir no colo de mãe, pai, tia, avô... Partir para além dos limites do berço. Partir em busca da vida que era sua e de mais ninguém. Partir se arrastando, engatinhando, andando. Partir caindo e se levantando. Partir numa ânsia recém-nascida. Partir impulsionado pelo desconhecido. Partir de improviso. Partir na crença de uma profecia. Partir colocando a alma na boca do vento. Partir de fora para dentro e vice-versa. Partir com fome de mundo. ...
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01/12/2016 - Menos sofrimento e mais amor

Nunca estamos preparados para mortes brutais, como a que se abateu sobre os jogadores da Chapecoense e demais passageiros do avião que caiu na Colômbia. É bem verdade que temos mais facilidade em aceitar a perda de alguém, com idade avançada, um tanto debilitado, depois de ser derrotado em uma longa batalha por alguma doença. A morte de jovens, sonhadores, vitoriosos nos deixa sem chão. Difícil de assimilar, de explicar, de digerir.

Porém, nada disso justifica a exploração, a exposição, a banalização do sofrimento pela mídia. A TV fala na tragédia o dia todo, trazendo velhos novos fatos, cutucando feridas, remoendo informações até a última gota. Sites de notícias fazem o mesmo. Até as redes sociais estão replicando a dor. Imagino os parentes das vítimas, totalmente fragilizados, sendo submetidos à tortura sem fim dos meios de comunicação. Ora um jogador está vivo ora está morto. Ele está bem, mas pode ficar paraplégico, perder mais uma perna. Quem é o culpado? Podia ter sido diferente? E o que fulano tem a falar sobre isso? O resultado de tudo isso é simplesmente desumano. ...
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