Daniel Campos

Prosas

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Vestida de baile

Com um vestido de baile que nunca dançou, saiu pela cidade afora. Saltos nas mãos, pés na grama úmida, olhos para além dos anéis de saturno. Vestido cor de peixe, saltos cor de lua, grama cor do mar que não havia ali e olhos cor de céu em noite de cometas. Passos de campari. Ora mais pra lá ora mais pra cá de uma linha imaginária. Assim como a bebida, seus passos eram vermelhos e vinham num doce-amargo. Em seus passos folhas, caules, raízes, frutos e flores dos quatro continentes.

Não levava cigarros na boca ou na bolsa, aliás, não levava bolsa nem o toque de um celular. Mas levava preocupações. Era o trabalho da faculdade, o crediário de três ou quatro necessidades fúteis ou futilidades necessárias, era o mau-humor do chefe, era o sono, era o vizinho, era o começo da gripe, era o ciúme do pai, era a tosse da mãe, era a histeria da irmã, era a estripulia de um cachorro, era o relógio quebrado, era a roupa manchada, era um disco emprestado, era a azia do jantar, era o cunhado bêbado, era o carro enguiçado, era a falta de tempo, era a segunda-feira, era a falta de algo ou de alguém, era o fim da festa antes do fim. Festa? ...
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05/12/2015 - Vestida de vermelho

Vem vestida de vermelho, dama de fazer o cavalheiro dobrar-se em joelhos numa cortejamento que vai ligando e desligando e religando sentimento. Vem de pernas à mostra e cabelos ao vento. Vem e, em ensolarada ou ao relento, quem é que não gosta da beleza posta de forma mais que especial. Aliás, espacial, pois é vinda das estrelas, das constelações, das galáxias das imaginações que moram em minha cabeça. Não se esqueça de que somos partes do universo, repletos de infinitos e segredos, de luzes e sombras, de desejos e medos. Vem vestida de vermelho e nem precisa de espelho para saber que está soberana, dona das ruas, dos corpos, das camas. Arde em chama e faz arder na ilusão quem a ama. Rama de sedução. Trama de paixão. Drama de sim e não. Impossibilidade abstrata. Pele de cetim e coração de lata, vira-lata, que destrata a coisa amada. No seu vermelho, o relho do fim vai cortando, sangrando, se acabando em mim. ...
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Viagem ao espaço

Depois de um longo tempo sem emprego, foi contratada para fazer propaganda de uma multinacional. Quando pegou o imenso balão vermelho em suas mãos, pegou também uma dezena de sonhos e sabores que andavam caídos dentro de si. Sonhos de quando queria ir às estrelas, completar a volta ao mundo em um balão, testemunhar o sol mais de perto, sentir seu calor, seu suor.

Mas seu corpo, pelo regime de tantas ilusões, não conseguia suportar tanta força. E tantas vontades aliavam-se a um vento forte para arrastá-la para os céus. Os pés chegavam a derrapar no gramado ao lado da avenida onde tinha que ficar segurando a propaganda com um nome em inglês. ...
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27/02/2008 - Viagem espacial

Hoje, vou colocar minha roupa de astronauta e explorar um planeta desconhecido. Um planeta que, de birita em birita, gira fora do eixo, praticamente, no mundo da lua. Se quiser embarcar comigo nesta viagem espacial, cuidado. A previsão dos especialistas é de que estamos sujeitos a uma chuva de meteoros. Afinal, este país nasceu do conflito entre o empregado e o patrão, entre o socialismo e o capitalismo, entre a miséria e o show business. A instabilidade é sua marca.

Entre translações e rotações, este planeta tem movimentos de roleta de cassino. Há ventos de apostas ventando para tudo quanto é lado. A cada perda, um terremoto emocional. A cada vitória, uma tempestade banhando o próprio ego. Também, o que dizer de um país que vive de palpites, de hipóteses, da famosa "fezinha popular"? Aponta no universo como jogo do bicho e vive o constante dilema do pregão da bolsa de valores: Comprar ou vender? Gastar ou poupar? Independentemente da resposta, é preciso jogar as fichas na mesa... ...
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08/10/2009 - Viaja Comigo?

Quero andar de bicileta com você pelas ruas de Londres. Quero escrever seu nome nas árvores de Nova York. Quero tê-la olímpica em meus braços durante uma estada em Barcelona. Quero navegar pelos canais de Amsterdã fazendo do meu corpo seu barco. Quero manchar nossas bocas nos vinhedos franceses. Quero assistir com você, inúmeras vezes, o pôr-do-sol em Florença. Quero que nosso trenó seja puxado por cães em British Columbia. Quero anoitecer em seu relevo na planície indiana do Taj Mahal.

Quero roubar um camelo e, entre corcovas, abraçar-lhe pelo Saara. Quero alugar um trailler e rodar a Austrália ao som daquela música que você gosta. Quero cruzar a cordilheira himalaia tendo você na garupa de uma lambreta. Quero lhe amar por entre os fiordes da Patagônia chilena. Quero atravessar a muralha da China carregando você em meu colo. Quero, em Zurique, lhe ensinar a nadar em uma psicina de chocolate. Quero lhe dizer eu te amo incansáveis vezes em Viena. Quero lhe roubar um beijo quando fechar os olhos diante do Grand Canyon....
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11/01/2017 - Viajando

Eu fui a tantos lugares sem sair do lugar. Eu viajei sem sequer arrumar as malas. Eu saí de casa sem sair da cama. Eu visitei vários capítulos de uma trama. Eu ouvi falas e canções, vi paisagens, estive de passagem por tantas passagens. Eu cheguei ao mundo da fantasia, da imaginação, do coração. Eu estive no micro e no macro. Eu provei de vários pratos, perfumes, texturas, cores. Eu mergulhei em matizes de amores inesquecíveis. Eu me afundei em histórias do amanhã, do agora e de memória incríveis. Eu me banhei em águas profundas e sagradas. Eu corri estradas e estradarias. Eu subi e desci escadarias de um tempo perfumado. Eu planei, flutuei, voei. Escalei montanhas, testemunhei tamanhas provas de que tudo está conectado. Eu estive em tantos pontos de quânticos contrapontos. Eu fui só sem nunca estar só. Eu fui desatando nós sem desatar o nó que sou. Eu fui onde estou. Eu estou onde fui. Eu deixei meu corpo e me tornei um sopro. Um sopro sem casa. Um sopro de asas. Um sopro sem pausa. Um sopro que causa uma vontade imensa de continuar essa viagem de amor sem qualquer aragem.


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03/04/2015 - Viajando no silêncio

Transmuta do grito ao silêncio. Diminua o volume da televisão, a altura da voz e os repiques do seu coração. Pisa mais leve, de preferência descalço para não haver barulho de solado ou salto e tomando o solo feito de via-crúcis e pranto passado como sagrado. Repara como até os pássaros diminuem hoje a cantoria e a rua de agora não é como ontem se via. Repousa as cordas do violão, observa como os trens chegam quietos na estação, ouça a voz da solidão. O andor da quietude passa e pede respeito. Nada de palavrão, de berreiro, de exaltação... Hoje o amor que perdura por milênios passa em procissão. Porém, nada de se fazer sofrimento, de ser morada de tristeza, de remoer a morte... O silêncio, além de ser uma emanação de respeito, leva-nos para além do tempo a um aprendizado: o que é amar? Solidarizar-se com aquele que foi crucificado há dois mil anos não é passar o dia chorando, mas amando.


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14/05/2013 - Vida à disposição

Que a morte não demore a chegar. Estou no fundo do poço, no fim da linha, no fio da navalha. Estou pronto para partir. Partir para mundos que permitam voos mais altos ou, simplesmente, que lhe permita um voo raso. Depois de tanta escravidão, exploração, submissão, é preciso que a vida se quebre e liberte a essência de tudo. A morte não é para os fracos, como dizem, mas para os fortes que tiveram suas forças e coragens sugadas pelo dia a dia. A morte não é uma saída ou um atalho, mas o caminho natural para a renovação. ...
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21/11/2009 - Vida além da vida

Nem na rua São Miguel, nem no mercadinho, nem no brechó da igreja São Benedito... ninguém mais a viu em lugar algum. Dizem que ela descansou; que partiu cedo demais; que finalmente encontrou a paz. Há um ano dona Adélia, brasileira filha de italianos, casada há mais de cinqüenta anos, mãe, avó e bisavó, dona de casa e ministra da Eucaristia de Nossa Senhora de Monte Serrat desapareceu. Curiosamente, ela deixou todas as suas roupas, os seus sapatos e, até mesmos, seus óculos arredondados. Nem mesmo a aliança levou consigo. Corajosa, quis partir completamente livre para dar início a uma vida nova. ...
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21/05/2015 - Vida de cachorro

Meu cachorro me falou que não quer mais ser cachorro, que não aguenta mais viver no osso da vida pós-moderna. Enjoou da ração que é todo dia sempre igual. Sente necessidade de ter crédito na praça para comprar o que vê nas propagandas da televisão. Quer fazer terapia para passar incólume pelos pets shops. Meu cachorro está depressivo com saudade de ser cachorro de verdade, seja correndo pelo campo, rolando na grama, latindo quando lhe der na telha. Agora meu cachorro tem que respeitar a lei do silêncio do condomínio estando, portanto, terminantemente proibido de uivar para o melhor da lua cheia que é na noite alta. Tem saudade até do tempo que tinha uma pulguinha ou outra para passar boas horas se coçando. Hoje com esse tanto de shampoo e condicionador canino está tão limpo e macio que parece mais enfeite que cachorro. Ele queria mesmo era correr livre, rosnar pra carteiro, roçar nas cadelinhas, cheirar o traseiro alheio. Mas agora vive entre paredes, espiando o mundo apenas da janela do décimo sétimo andar. E quando sai é de coleira. Deixou de ser cachorro para ser um produto. Ele sente falta do tempo que eu tinha tempo para brincar com ele e não apenas para postar suas fotos nas redes sociais. Meu cachorro anda tão estressado que morde o próprio rabo e deita de barriga para ficar olhando pro teto. Odeia o funk, o sertanejo universitário, o pagode dos vizinhos. Queria mesmo era poder escutar o som do vento batendo nas árvores, a cantoria da passarada, as prosas das pessoas que tinham muita história para contar. Hoje meu cachorro tem as unhas compridas porque só anda no porcelanato. Queria mesmo era pegar carrapicho, correr atrás de galinha, deitar em qualquer lugar. Queria poder comer comida de verdade, meter as fuças onde quisesse e ainda sorrir numa total falta de compromisso, pois na sua agenda só constaria uma anotação: ser cachorro.


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