Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 307 de 320.

Lula, roberto carlos e ofélia

Por que a vida tem essa cara séria, emburrada? Onde está a magia? Será que ela foi embora? Quando pequenos, ouvíamos aquelas histórias, aquele mundo de faz-de-conta que com o passar dos anos perde força. Não que se queira viver no cenário dos três porquinhos, mas será que a magia é restrita às crianças? E os adultos? Os adultos sufocam essa magia dentro de si à medida que as responsabilidades pesam, mais e mais, em seus ombros. A magia adulta é quase uma coisa marginal, proibida, descabida. Ela se concentra no amor, mas viver de amor, nos dias de hoje, é quase impossível. O mundo mágico da infância só volta na velhice e, infelizmente, de forma inconsciente, através de alguma esclerose. ...
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Comentários (1)

Mais severinos

Joelhos ao chão. Olhos febris buscando algo além do entardecer azulado. Mãos se separando, deixando escorrer a terra vermelha. Não era uma prece pedindo chuva ou uma boa colheita, tampouco um ato de agradecimento. Era apenas um homem, de pele queimada pelo sol e de chapéu de palha, perdido na sua paisagem, despedindo-se da própria vida.

A porteira do sítio que se fechara em sonhos foi obrigada a se abrir ao progresso. Os cães ressoando no terreiro, as galinhas cantando nos ninhos, os gatos dependurados na carreta, a vaca leiteira mugindo ao fundo, o homem velando toda aquela pasmaceira, todos permaneciam incrédulos. As árvores, o arado, a túia, o poço... Tudo daria lugar ao progresso com seus caminhões, seus concretos, suas indústrias, seus aviões, sua desordem, seus homens feitos de máquina. Como aceitar outros braços cuidando daquele lugar, a traição cega, o estupro da terra. ...
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Mais uma do mogicano

Cabrum! Últimas previsões do mogicano. Urgente, urgentíssimo! Mojimirim em perigo! Alô Greenpeace! Poluição em cima de poluição. Mas estamos em boas mãos, o prefeito é médico sanitarista e o vice é do partido verde. Sai de baixo! Se a administração política conseguisse fazer tudo o que fala, seria conhecida como a administração do impacto ambiental. Sorte que ela não consegue. Deus existe e dá plantão em Mojimirim. ELE tem que trabalhar dobrado para que uma parte do povo não caia na conversa fiada de certos políticos. Olho vivo e faro fino, povo mogicano....
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Mãos

Um exército de mãos marcha. Diariamente, invade as quadras, as calçadas, as praças de pedra e de flor. A cidade é tomada por outra cidade. Uma cidade que não é feita de placas de concreto ou vergalhos de ferro ou baldes de piche... Uma cidade que é feita de mãos. Algumas mãos surgem delicadamente, outras como tapas na cara. Algumas mãos machucam, por ódio ou pena. Mãos com anéis. Mãos com feridas. Mãos brancas. Mãos negras. Mãos sujas. Mãos acostumadas. Mãos pequeninas. Mãos com unhas esmaltadas. Mãos calejadas. Mãos com linhas que dizem a mesma coisa: fome, miséria, violência, medo....
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Mar de sândalo

Como um mar, ela crescia, decrescia e crescia novamente por onde passava. Em certos dias, ela passava num mar revolto. Noutros, mar manso. Mas sempre crescendo, decrescendo e voltando a crescer. Era marcada pelo movimento. E não era dançarina, atleta ou coisa e tal. Era uma mulher sem endereço fixo, sem telefone fixo, sem identidade fixa. Mares não são fixos.

Mares têm nome, mas dia estão aqui, dias estão ali e outros acolá. E ela era sim e não. Cheia ou alta, como uma maré que obedece ao calendário lunar, ela emergia e submergia em sua própria inconstância. Entre o seu crescer, decrescer e tornar a crescer, o tempo passava em um intervalo que ia de míseros segundos a semanas, meses, anos inteiros. E nesse momento, pranchas surfavam pelo seu corpo. Um corpo que não era de sol nem de algum bronzeado barato. Era um bronzeado de areia. Ao invés dos poros, seu tecido parecia formado por grãos de uma areia macia. Por isso, a sensação de que a qualquer momento ela poderia voar nos braços de uma tempestade de deserto. E vivia esperando por uma arrevoada de vento. ...
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Menina de ipanema

Os óculos de sol pairados sobre o cabelo davam o tom de informalidade não só a quem os usasse, mas à paisagem como um todo. Havia mais guarda-sóis do que sol naquela falta de praia. Mesmo assim, os óculos de lentes arredondadas continuavam lá. Quem sabe escondessem olhos tão negros quanto eles ou um tom de oceano. Oceano que não havia ali. E se fosse negro, talvez cometas passassem por ali. E se oceano, ondas dariam outro ritmo àquela tarde recém-nascida.

Um ritmo que quando viesse nos afogaria e quando fosse embora, nos arrastaria. Bailaríamos feito netuno e iemanjá. No entanto, quando tudo parecia indicar moda praia, seus pés pisavam em sandálias de salto fino. Embora o verão acalorasse as cores, óculos, cabelos e sandálias pintavam-se de preto. Daquele jeito, ela não cairia na piscina nem debruçaria seu pouco decote na churrasqueira. Não falava, não jogava, não beijava, não dançava, não desmaiava. Embora nem por um segundo que fosse estava sozinha. ...
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Mesmo fora de moda, bom-dia

Hoje, o dia nasceu sem dizer uma só palavra. Não sabia se redondo, quadrado ou triangular, porém o sol começava a surgir por entre nuvens desbotadas. O cheiro de pão sovado, o cheiro de café escapulindo do bule, o cheiro frio do orvalho... Aromas que iam como vinham, sem avisos, no de repente de costume.

O homem, deitado na sarjeta, que até ontem era um bêbado, hoje não se sabe o que é. Acorda sem espelho por perto e se vai sem sequer ver o rosto que o novo dia havia lhe doado. Vergonha ou, descrença ou qualquer outra coisa que o faça abaixar a cabeça e continuar andando em busca de um rosto ou de um copo de cachaça. ...
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Metamorfose

Ela chega sozinha. Toca a campainha e quando se dá conta de que nem a mãe nem o irmão nem a tia nem a irmã nem a governanta estavam ali, a solidão perde força para outra sensação não menos devassa. A maçaneta dança nos olhares apreensivos da menina ao tempo em que a porta a enclausura em medos desconfortáveis. Os olhos daquele que abrira a porta lhe fazem querer ir embora a qualquer preço. No entanto, sobe em sua garganta uma vontade de ficar com tal intensidade, que desafina as cordas vocais e de sua boca não sai nada além de um miado. Não tem decotes ou fendas, mas sente-se nua diante daqueles olhos engessados em seu corpo....
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Mulher anelada

Entardecia e algo reluzente brilhava junto à sarjeta. Ali onde a chuva se faz enxurrada. Podia seguir sem me importar com aquilo, mas a curiosidade me fazia ir ao encontro do desconhecido. Para minha surpresa, tinha nas mãos, um anel dourado (certamente de ouro, não me parecia bijuteria), com três pedras brancas meio retangulares incrustadas. Uma bela jóia. Quem a perdera, no mínimo, devia estar bebendo um drinque amargo de angústia.

Mas como o anel fora parar ali? Não havia nenhuma joalheria por perto, ninguém cabisbaixo a sua procura. Podia ser um anel de estimação, um anel de noivado, um anel ainda não usado. Ela poderia estar aos prantos, pela perda, pelo dês-compromisso, pelo não presente. Pensando melhor, descarto essa última possibilidade, o anel parecia conter um "qu" de mulher. Podia ter caído levemente do dedo feminino ou podia ter sido jogado contra o chão com todo ódio. Nos dois casos, inconsciente ou consciente da perda, a mulher seguiu sozinha. Como uma espécie de cinderela. Mas será que ela fugiu antes de alguma meia noite? Será que sua carruagem se transformou em abóbora? Será que seu príncipe encantado não achou o anel?...
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Mulher de bagdá

Uma mulher anda pelas ruas de Bagdá. Militares americanos, britânicos, alemães. Escombros. Ruínas. Destroços. Não se sabe se as ruas são feitas de pedra ou se as pedras são feitas de ruas. E por linhas tortas de um destino mais torto ainda aquela mulher de rosto coberto, de braços cobertos, de pernas cobertas caminha descalça à procura de um filho que a guerra levou.

Em cada rosto, um medo.

Em cada medo, um rosto.

Em cada rosto, uma dor.

Em cada dor, um gosto e um desgosto....
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