Daniel Campos

Se eu morrer de amor


2003 - Prosa

Editora Auxiliadora

Resumo

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Receita de um cruzar de pernas

De repente, as cores da saia quebram as fronteiras com as cores da pele. As sombras e as faltas de sombra, num corpo de baile. Cenas de um movimento, de um contentamento, de um lamento se espalham. E há todo um jeito especial de se dar o encontro. Dependendo da intensidade desse encontro, eis o vento. O vento surgindo. O vento sumindo. O vento indo e me vindo.

Vidas cruzadas. Órbitas cruzadas. Taças cruzadas. Notas cruzadas. Cartas cruzadas. Insinuações cruzadas. Juras cruzadas. Chamas cruzadas. Retas cruzadas. Nuvens cruzadas. Pernas tombadas, debruçadas, trançadas,..., cruzadas sobre si próprias.

Na receita de um cruzar de pernas, segue-se um ritual. Primeiramente, os movimentos, que compreendem os traços que as pernas esboçam até se cruzarem, não podem ser bruscos ou lentos demais, devem ser regidos por um período exato. É necessário que o ângulo formado no cruzamento das pernas seja algo perto da fração entre a distância que seus olhares estão das pernas dela e a, que os olhos dela estão de você (são distâncias completamente diferentes). Para continuar com expressões matematicamente impossíveis de serem entendidas e até mesmo calculadas até o fim, a saia, aparentemente de um tecido mais leve que a gravidade, não pode estar nem perto nem longe demais do joelho. É preciso haver a interferência do acaso, e paralelamente, a busca por um destino específico. Porém, todos os volteios dessa geometria devem se render à simplicidade do gesto.

O gesto deve ser de uma notoriedade que, quando a noite cair, seja possível enquadrar a lua, pela fresta restante do cruzamento das pernas da mulher que não se sabe. Mesmo que haja um sol imenso rondando lá fora, se o cruzar de pernas for de um feitiço singular, chamará por uma lua. E quando você olhar fixamente para as pernas cruzadas, poderá ver as coisas que a lua traz consigo: um casal de namorados num banco de praça; um violão que segue nas costas; uma vela que chora o seu próprio corpo.

Diante daquela criatura mitológica, seus olhos cairão sobre o cruzar de pernas, como se investigassem, numa rotação mais lenta do que a habitual, cada milímetro daquele oceano de caligrafias. Então, poderá ler aquele cruzar de pernas. Os joelhos pertencerão, sempre, ao primeiro plano focal. Serão a origem da circunferência e todos os afluentes de uma beleza suspensa. Joelhos que permitirão o escorregar de promessas pela musculatura da mulher que cruza as pernas. Será possível imaginar os ossos (seus encaixes, sua porosidade), identificar o nome de cada um deles até se deparar com o dorso dos pés. Pés abandonados no ar. E logo, seus olhos, também estarão abandonados no ar.

Definitivamente, um cruzar de pernas não se aprende, apreende todos os versos e inversos da vida. É um encanto de nascença. Um encanto que a mulher traz adormecido e que desperta no instante oportuno. Dirão que é instinto, mas a mulher que se sabe, controla minuciosamente cada quadro desse encontro de pernas e olhares. Olhos que se cruzam nas cruzas das pernas.
A sensualidade de um cruzar de pernas perfeito nunca fará menção ao vulgar. Quando o movimento estiver completo, ela dominará os elementos que quiser com a força irrecusável de um pedido mudo. E esse cruzar de pernas será o apocalipse para os réus confessos e, ao mesmo tempo, a sua maior fraqueza, posto que a magia do gesto só acontece quando ela estiver nua de qualquer porção de realidade. E toda nudez é frágil.

(...)

E lá está ela, e lá estão elas. Não importam os olhos fadados à noite ou as mãos esquecidas de um piano. As pernas se cruzam e o corpo se torna pano de fundo. Quantas coisas se escondem por detrás de um cruzar de pernas. Diante do cruzar de pernas daquela criatura, simplesmente feminina, uma nova cidade acontece. Uma cidade partida em pedaços de ilusão.


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