Cenarius
22/03/2008 - Está na hora de arrebentarmos aleluia
Vó Adélia está depressiva. Aquela mulher forte e de olhos tristes, filha de italianos, ao final dos seus sessenta anos de idade conheceu a depressão. Começou, até mesmo, a ingerir aqueles remédios tarja-preta que mais fazem mal do que bem para a saúde. Além da sonolência, anda mais chorosa do que de costume. O leitor deve estar se perguntando com certa razão: o que Vó Adélia tem a ver com o Sábado de Aleluia? Á primeira vista, nada. Mas só à primeira vista.
Seja nas missas na Nossa Senhora das Graças, ou na Nossa Senhora das Dores, ou na Nossa Senhora de Mont Serrat, ou na igreja de São Benedito ou na matriz de São José, dona Adélia sempre esteve ao meu lado. Novena de Natal, Via-Sacra, Procissão, Benção das rosas ou dos pães, rosário da vela no meio da praça, quermesses, terços de Santo Antônio, São João e São Pedro. Independentemente da ocasião, lá estava minha vó a me dar o braço.
Na Semana Santa não era diferente. Começávamos rumando juntos na procissão de Domingo de Ramos, levando nas mãos folhas de coqueiro cortadas por meu avô. Durante o decorrer da semana, confessávamos, adorávamos o Santíssimo, assistíamos o lava-pés... Tudo isso na companhia um do outro. Depois, também juntos, acendíamos as velas e seguíamos, em silêncio, a procissão de Nosso Senhor Morto. No sábado, acompanhávamos a benção do fogo durante a Vigília Pascal. Já no domingo, madrugávamos para assistir a missa de Páscoa, às cinco horas da manhã, a céu aberto.
Além desses eventos religiosos, eu vivia às voltas com seu fogão, beliscando um ou outro prato. No domingo de Páscoa tinha macarrão, leitão a pururuca e outros quitutes. Admirava sua força de vontade ao não comer carne vermelha em todas as quartas e sextas-feiras da Quaresma. Ah! De manhã, antes de partimos para as missas, bebia café em sua casa. Depois de São Benedito, é claro! A imagem em um altar de madeira no canto da cozinha era o primeiro a ganhar o café. E quando chegávamos da missa, também entrava em sua casa para outro ritual. Depois de comungar era necessário beber água para engolir possíveis polens da Hóstia que ficavam na boca. A água devia vir antes de qualquer outra comida ou bebida.
Hoje, Sábado de Aleluia, é dia em que meninos e meninas se unem para colocar bonecos simbolizando Judas - o traidor - nos postes. Quando chega perto de meio-dia, a menina pega paus e batem no traidor de Jesus. Depois de pedras e pauladas, o boneco arde em fogo ao som de rojões que comemoram a arrebentação da aleluia. É a transição da morte para a Ressurreição de Jesus. Cito isso porque às vezes o futuro, por alguma razão, nos beija como Judas.
Não escondo que a notícia da depressão de Vó Adélia me surpreendeu tristemente. Há quase quatro anos eu deixei as redondezas de sua casa, no interior de São Paulo, para ganhar as linhas e as curvas de Brasília. Ela se apegou ainda mais a Nossa Senhora de Mont Serrat. Eu me consagrei como filho de Nossa Senhora Auxiliadora. Ela virou ministra da Eucaristia. Agora, ela entrega o corpo de Cristo para os fiéis que vão à igreja no final da tarde de sábado e também o leva até a casa dos doentes, durante a semana. Eu já tive o privilégio de comungar de suas mãos. Foi uma alegria mútua. Não foi preciso dizer nada. A emoção estava explícita. Afinal, por muitos e muitos anos, caminhamos bem pertinho pelos templos da fé.
Penso, penso e penso e não descubro a causa da sua depressão. Mas ela está doente. De certo, bonecos e mais bonecos de Judas devem estar lhe cercando, lhe atormentando, lhe castigando. Perdeu o ânimo, o pouco de brilho que havia em seus olhos, a vibração que vestia sua voz. Diz estar cansada. No entanto, não pára. Além de ajudar nos ritos das celebrações, está cuidando de um brechó para arrecadar fundos para a paróquia da qual faz parte. Definitivamente, a vida nos prega peças, como Judas. Quando acreditei que ela estava perto de ter uma velhice tranqüila e de realizar todos seus sonhos, descubro que a mulher que lê a Bíblia, que reza terço e que acompanha missas no rádio todo santo dia está cansada de viver.
Hoje, se eu pudesse, colocaria um boneco deste Judas que está traindo Vó Adélia em um poste e chamaria a criançada para bater nele. O problema é que eu cresci e sei que mesmo queimando o tal boneco, a depressão dela não acabaria. Contudo, a fé queima o começo de um novo tempo. E isso é fato. Como dizemos no interior paulista, está na hora de arrebentarmos aleluia. Escute os foguetes, Dona Adélia. Vida nova!
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