01/02/2009 - Vassouradas
Por detrás do uniforme alaranjado e da vassoura, uma mulher. Não importa se ela se chama Francisca ou Bernadete ou, se ouviu um eu te amo antes de dormir ou se ela acreditou que a vida fosse fantasia, ao menos uma vez, mas as suas vassouradas. Eu vassouro, tu vassouras, ela vassoura. E ela vassoura o mundo.
- Não agüento mais varrer, varrer, varrer. Eu varro tudo quanto é tipo de lixo. Varro palito de picolé. Varro coco de cachorro. Varro folheto de loja. Varro latinha de coca-coca. Varro folha de árvore. Varro sacola plástica. Varro batata-frita. Varro chinelo sem par. Varro resto de cigarro. Varro camisinha. Varro lenço de papel. Varro caco de vidro. Varro pilha descarregada. Varro cartão telefônico sem crédito. Varro recibo de banco. Varro cartas impregnadas de saudades. Varro os remetentes e os destinatários. Varro o que o vento levou, leva e ainda levará mais adiante. Varro o lixo do lixo do lixo. Tudo o que existe eu varro. Varro, logo existo. Pelas piaçavas dessa vassoura quantos amores já passaram? Afinal, eu vou pelas ruas varrendo tudo o que foi deixado. E por dia, por hora, por minuto quantos amores são deixados pelo caminho? São beijos caídos, são paixões perdidas, são casamentos abandonados ao longo da sarjeta. Dizem que o lixo não presta pra nada, que é morto. Mas alguns desses amores choram ao serem varridos para debaixo dos tapetes, para dentro dos bueiros ou das latas de lixo. Eu chego a ficar com dó, mas se eu não varrer os urubus descem e...
A mulher olha para o céu, na tentativa de encontrar os urubus, e continua...
- Já que os urubus se vão longe, eu posso dizer. Quando eu nasci ninguém me perguntou o que eu queria ser. Mas eu nasci na periferia da periferia da periferia. Fui conhecer luz elétrica com quinze anos de idade. Calcei meu primeiro sapato aos 17 e engravidei aos 16. Entre conhecer a luz e um sapato, conheci o primeiro dos meus sete filhos. Médicos, juízes e engenheiros geralmente têm uma outra trajetória. Então, logo veio a vassoura. Primeiro, fui emprega doméstica da minha mãe; depois, do meu marido; em seguida, do meu filho e agora, sou empregada doméstica da cidade inteira. Virei gari. Mas eu não sou apenas uma vassoura ambulante. Eu tenho nome, tenho amores e sonhos. Muitos já tentaram, mas ninguém ainda conseguiu varrer meu nome, meus amores e meus sonhos. Pode parecer pouco, mas é tudo o que eu tenho. Isto é, além dos meus seis filhos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Eu sei, falta um. O quarto morreu de poeira. Onde já se viu filho de pobre morrer por conta de poeira? E minha irmã, palpiteira como ela só, disse que foi de eu varrer a casa depois de uma chuva de pó que aconteceu lá na baixada. Eu não gosto muito de falar sobre isso, mas foi uma vassoura como essa aqui que matou meu filho. Se não fosse essa sina de varrer, varrer, varrer tudo o que encontro pela frente talvez ele ainda estivesse por aqui, correndo, querendo, vivendo. Essa vassoura é uma praga. Mas é ela quem garante o feijão na mesa lá de casa. A gente briga, discute, mas se gosta. Uma depende da outra. Somos companheiras inseparáveis.
A mulher para de varrer, virando a vassoura de ponta-cabeça. É como se ela conseguisse enxergar os olhos da vassoura por entre aquela franja amarelada.
- Lembra, vassoura, quando eu quebrei uma das suas na cabeça do meu ex-marido? Lembra, vassoura, quando meu filho montou sobre você e abriu um sorriso, pensando que era seu cavalo. Se não me engano, para agradá-lo, você até relinchou. E quando a Julieta, minha filhinha caçula, pegou você e, mesmo sem agüentar o peso, começou um vaivém danado dizendo que já tinha aprendido a varrer? Ela tinha dois anos e falou que queria ser igual a mamãe. Fiquei cheia de orgulho e de raiva. Lembra quando eu quebrei o pé e andava pelas ruas apoiada em você? Pra que muleta para quem tem uma vassoura como você, não é? Lembra daquela vez, no baile do Jair, quando o Márcio dançou com a Clotilde e me deixou no canto? Pois é, passei a mão na primeira vassoura que eu vi e dançamos a noite toda. Teve quem riu, quem aplaudiu, quem achou estranho. Mas eu não estava nem aí para ninguém. Queria mais era dançar. Parece que foi ontem... A senhorita me cede essa contradança?
A mulher abraça a vassoura e sai a dançar pela rua, arrastando a vassoura que parece ser feita de pluma em seus braços. De fora não dá para saber se a vassoura a conduz ou é ela quem conduz a vassoura. Afinal, são duas damas. Passos para lá, passos para cá, a mulher sorri e se afasta da parceira, voltando a varrer.
- Ninguém dá nada por nós, mas a gente está aí, pro que der e vier, não é dona vassoura? Podem cuspir, mas eu não varro cuspe. Podem falar mal, mas eu não varro desaforo. Podem desdizer, mas eu não varro baixezas. Eu varro a vida. E tem tanta vida transformada em lixo. São olhares, sorrisos, gestos, lembranças, saudades, ilusões, abraços, arrependimentos jogados pela rua afora. Algumas coisas eu ainda aproveito, reciclo, reinvento. Afinal, nem tudo é perdido. Mas a maioria vai mesmo é pro lixão. É tanta vida estragada, desperdiçada, jogada fora sem mais nem menos. Chega a dar dó. E depois ainda dizem que eu sou inferior porque sou gari. Talvez por ter passado a vida varrendo eu saiba dar valor as coisas e jogo muita pouca coisa fora. Se bem que teve uma época que eu fiquei um lixo e, por pouco, não varri a mim mesma.
Ela para de varrer, debruça-se sobre a vassoura, e suspira... Mas não demora ela levantar a cabeça e voltar a sorrir forte.
- Por sorte, estou aqui. A vassoura, que não quer se livrar de mim, não quis me varrer. Mas essa fase já passou. Hoje, não me importo mais se os outros me chamam pelo nome, se acreditam que eu também sou capaz de amar e de ter fantasias. Tornei-me especialista em varrer o que não me interessa. Eu me chamo Arlete, saio com um cara que se diz louco por mim e o sonho de não ser nada além de mim mesma. Afinal, por mais que se tente evitar, um dia as máscaras, assim como outras coisas que sobram na gente, são varridas para algum lixão. E como já disse, no lixão as vidas se encontram e se decompõe num mesmo fedor ou num mesmo estômago de urubu. E esse lixão pode ser aqui, ali, acolá, em qualquer lugar.
A mulher torna a olhar para o céu, a espreita dos urubus, e continua suas varrições pelas ruas de uma cidade em decomposição.
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