Daniel Campos

Texto do dia

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07/06/2009 - Tirem-me de perto de mim !!!

O cenário é o seguinte: Há uma mulher deitada no chão, como que dormindo. De repente, espreguiça-se lentamente, esticando-se toda. Abre os olhos, levanta, olha para os lados, todos vazios e ausentes, e se desespera. Chama por dezenas de nomes próprios e impróprios, mas ninguém lhe responde. Corre de um lado para outro a ponto de ofegar, colocar a mão no peito e sentar ao chão. Estava exausta, cansada de procurar pelo mundo que deixou ao dormir.

- Onde estão todos? Será que o mundo acabou e algum deus palhaço me deixou aqui sozinha? Será que a reprodução da nova era humana irá começar justamente de mim? Será que, por algum erro celestial, fui escolhida? Se eu sou a nova Eva, onde estará o novo Adão? Até que não seria nada mal ter um homem só para mim numa espécie de paraíso, mas que desta vez ele não nasça com gosto de barro. E nem tentem inverter a história e fazê-lo nascer da minha costela. Não vou compactuar com nada que possa destruir as minhas medidas. E se esse homem não me agradar, não haverá santo que me faça gerar uma civilização futura. Falando nisso, quantos filhos eu vou precisar colocar nesta nova terra? Barrigas e mais barrigas imensas. Uma atrás da outra. Engordar e emagrecer abruptamente. Se é que vai haver tempo para emagrecer. Vou acabar com anos e anos de academia. Deu tanto trabalho para ser assim. E meus seios? Já imaginou como vão ficar depois de 10, 13, 15, 18 filhos? Não tenho dúvida de que me transformarei em uma aranha, com múltiplos e seguidos filhotes. Eu, prisioneira de minha própria teia. Mas se assim for, que eu seja uma aranha-negra que, consumado o prazer, mata seu par. E se todos os médicos foram extintos, como farei para ter meus filhos e depois fazer lipoaspiração e colocar silicone e tratamento psicológico?

A mulher coloca as mãos sobre o rosto, num sentimento entre a decepção e o querer se esconder do tal novo Adão. Afinal, se ela não fosse encontrada seus problemas não começariam. Ela que até poucos minutos queria ser achada a qualquer custo, agora já pensava em se transformar em uma eterna fugitiva...

- Eu não aceito essas condições, esses planos, esses sonhos malucos... Se só existir, realmente, eu e esse homem que ainda não sei o nome. E se na hipótese de eu vir a ter uma ninhada de filhos com eles, o mundo ainda passaria a ser habitado só pela nossa família. O incesto seria inevitável para a sobrevivência da espécie. Eu teria que passar pelo constrangimento de ver minha família se beijando, se relacionando, se engravidando... Não haveria mais distinção entre pai, mãe, filho... Ou se seria fêmea ou macho, com o único propósito de crescer e multiplicar. Chega a ser nojento. Mas como voltaríamos ao conceito de animais irracionais e constantemente no cio, não haveria pudores. Não, não vou deixar que me façam qualquer tipo de lavagem cerebral. Olha só deus, eu não vou parir ninguém. Está ouvindo? Eu não vou dar a luz a ninguém. Que o mundo acabe. Eu não estou nem aí para seus projetos. Aliás, eu não quero fazer parte de projeto algum. Sempre fui uma mulher autônoma, independente, dona do meu nariz. Não vai ser agora que vou deixar que me coloquem rédeas...

Ela parece ganhar força, brilho nos olhos, sair da condição de vítima, dominada por uma espécie de poder.

- Eu sou a última mulher do mundo. Posso fazer tudo o que quiser. Posso dormir até mais tarde, comer sanduíche de bacon, andar pelada, assistir desenho animado o dia todo, beber manga com leite, dirigir na contramão, ouvir música no volume máximo, usar um sapato de cada cor... Não preciso mais ouvir ordens, reclamações, broncas, desaforos, conselhos, ilusões, elogios, cantadas...

Como se caísse um oceano de água fria em sua cabeça, ela volta a se chocar...

- Eu nunca mais vou ouvir nada? Isso é desesperador. Vou me vestir para quem? Vou arrumar o meu cabelo para quem? Vou implicar com quem? Não tenho mais mãe, pai, irmã, cunhado, namorado, ex-namorado, vizinha, amiga... Ahhhhhhhhhhhhhh! Castigo? Retaliação? Brincadeira? Seja o que for que esteja acontecendo aqui, eu não vou durar até o anoitecer nessas condições. Isso é uma espécie de solitária. Eu não nasci para viver sozinha, tampouco conviver unicamente comigo. Mas pode ser uma pegadinha. Isso. Devem estar aprontando comigo. Uma espécie de reality-show. Deve haver câmeras e mais câmeras escondidas por aqui. Milhões de pessoas podem estar testemunhando, ao vivo, os meus medos. Minha nossa, eu preciso de um espelho. Onde está meu estojo de maquiagem? E que vestidinho horroroso é esse que me deram? Eu não me lembro de ter dormido com ele ontem.

A mulher entra em uma nova dimensão do pânico. Como a se olhar, a se observar, a se examinar toda, da cabeça aos pés. Procura sinais e marcas em seu corpo.

- Será que me despiram? Será que abusaram de mim? E se isso, ao contrário de um jogo, é o local que deixaram meu corpo quase morto? Será que fui assaltada, seqüestrada, violentada? Afinal, estou sem bolsa, sem celular, sem meus cartões de crédito. Ou será que o meu avião caiu, meu navio naufragou e eu vim parar em uma ilha deserta? Não me lembro se eu viajava para algum lugar. Mas se isso aqui é uma ilha deserta, o pessoal responsável pelo cenário se esqueceu dos coqueiros, da areia e, até mesmo, do mar. Além disso, onde é que estão os policiais, os repórteres e as equipes de busca? Eu não sei fazer fogo a partir de duas pedras, tampouco uma cabana com folhas de palmeira. E pior, não posso tomar sol sem antes me lambuzar de protetor solar. Isso aqui só pode ser o fim do mundo. Também odeio comer peixe cru. Nem pensar comer aquela carne fedorenta, com escamas e olhos de peixe morto...

Ela fica enjoada, tem ânsia de vômito...

- Mas por que justo eu escapei do meteoro, da era glacial, do dilúvio, dos tsunamis, dos furacões, da bomba nuclear? Bomba nuclear??? A situação pode ser ainda pior. Baratas são extremamente resistentes à radiação. Por alguma ironia de um deus palhaço pode ter sobrado somente eu e milhões, bilhões e trilhões de baratas. E eu não estou vendo cadeira alguma para eu subir e gritar por socorro. Já sinto as baratas me cercando, tocando suas antenas nojentas em meus pés, subindo pelas minhas pernas, entrando debaixo do meu vestido, mordendo o meu sexo, beliscando a minha carne, enchendo a minha boca com aquelas cascas, encobrindo meus olhos com suas asas, penetrando em minhas vísceras, devorando a minha vida e a minha morte com um apetite insaciável...

Ela corre, grita, pula, esperneia e volta a se deitar, como que se obrigando a dormir na esperança de acordar em outro lugar, em outra situação, em outro tempo e, quiçá, em outro corpo...


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