Daniel Campos

Texto do dia

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29/03/2009 - Sem tirar nem por

Por entre o inglês afinado de um doutor de Harvard, a voz experiente de um ministro do mais alto tribunal e a gana de um secretário de Promoção e Igualdade Racial... uma juíza, de cabelos tão vermelhos quão rastafari, tomou à palavra para si, fazendo todos os olhos e bocas e ouvidos e tatos voltaram-se para ela. Ela, filha de lavadeira e motorneiro de bonde, dona de um direito teórico e de fato, um direito de carne e pele negra, um direito de sensibilidade e autoridade tamanha capaz de lhe colocar no papel de descortinar uma realidade que poucos conhecem e que muitos não querem conhecer.

"Nós fomos criados como um todo e o ser superior foi nos dividindo, sem se importar com a raça", dizia como que semeando. E Deus, Oxalá, Alá, Shiva, Eru Ilúvatar eram testemunhas da história dessa mulher forjada em sacrifício, lágrima e sangue. O seu discurso não era uma apologia ao negro, mas à humanidade. Vestida de negro e adornada com um lenço colorido nos tons da terra, aquela juíza abria espaço com a sutileza de uma tempestade, quebrando correntes e preconceitos, libertando os navios negreiros que ainda insistiam em navegar, aprisionar, torturar, calar e, sobretudo, roubar os filhos de sua cultura, de seus costumes, de sua raça, de sua dignidade.

Quanto choro negro acumulado naqueles olhos negros. Quanto sofrimento negro vivendo naquela memória negra. Quanta angústia negra escondida por entre aqueles cabelos negros. Quanta vida negra pulsando naquele coração negro. Seus olhos eram duas noites bravias e sua boca falava palavras negras com a força de um tambor. Da mesma forma que o negro absorve todas as cores, aquela juíza absorvia mundos, histórias, sentimentos... Ao falar, colocava tudo isso pra fora como um desabafo, uma denúncia, ou uma declaração de amor à cor que o ser supremo a vestiu.

Sendo, ao mesmo tempo, ré, júri, testemunha, advogada, promotora e juíza de sua própria caminhada, ela chocou, apavorou, chacoalhou uma realidade e acordou, chamou e clamou por outra... "Se a justiça tiver que condenar alguém e não tiver quem condenar, ela condenará o feto, mesmo que na barrida da mãe, desde que ele seja negro". E aquela que vai de barco, de ônibus, de trem ou a pé onde o povo está, foi provocando reações diversas na platéia - indignação, enjôo, dor, arrependimento, taquicardia, choro, esperança. Quando silenciou, em pranto, pedindo socorro à raça como quem pede um prato de comida, já havia uma legião esperando para segui-la. E o que não lhe faltava era caminho a ser percorrido.

Mais uma vez, Luislinda foi Luislinda, sem tirar nem por.

Observação do autor: Crônica em alusão ao projeto "Diálogos sobre o racismo", do Ministério da Justiça, do qual participou a juíza Luislinda Valois dos Santos.


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