01/03/2009 - sapatos e fatos
Ao lado de um par de sapatos soltos ao chão, um homem, sentado em uma banqueta, debruça sua coluna, como que querendo se aproximar deles, numa conversa ao pé do ouvido.
- Por quantos caminhos vocês já me levaram? Eu perdi a conta. Foram tantas esquinas, tantos jardins, tantas calçadas, tantos cruzamentos. Impossível contar o número de quilômetros percorridos. Quantos passos nós já passamos? Quantos passos já passaram por nós? Eu rodei o mundo com vocês. O meu mundo. Mas eu fui mais forte. Minhas cicatrizes, feitas pelas andanças do tempo, ficaram por dentro. As suas, extravasaram ao ponto de ficarem expostas. A dor da estrada cortou na carne. Manchas, furos, rasgos. Por mais que eu tentasse impedir, os estragos foram inevitáveis. O couro não agüentou. Hoje, depois de muitos anos, vou ter que ir sem vocês. Vocês, meus sapatos pretos, terão que ficar em um canto do armário. Em consideração, não vou jogá-los fora. E por ciúme, não vou entregá-los aos pés de outro alguém. Vou aposentá-los com as regalias de quem pagou, durante muito tempo, um fundo de previdência privado. Vocês vão ficar acamados, mas vão ficar bem.
O homem pega os sapatos, um em cada mão, e continua a conversa.
- Com vocês, eu já corri de polícia e ladrão; já andei nervoso em círculo; já esperei uma noiva no altar; já esperei uma amante no bar; já fiz o gol da vitória; já dei comida ao engraxate; já segui velório; já sai em bloco de carnaval; já grudei em chiclete; já assisti ao show do Kid Cavaquinho; já fui um pouco Michael Jackson ao fazer o moonwak; já segui uma namorada; já marchei na parada de Sete de Setembro; já acertei um gato no meio da noite; já acompanhei serenata; já apaguei bituca de cigarro; já tomei banho de piscina; já fui ao cinema; já pulei muro; já pisei fundo no acelerador; já pisei em coco de cachorro; já escorei muro; já deixei muita canela roxa; já comecei strip-tease; já escrevi meu nome na areia; já pulei amarelinha; já matei barata; já sapateei de alegria e de raiva...
Os olhos vão longe, um sorriso amarelo surge no canto da boca. O ar é de despedida. Ele volta os sapatos ao chão, desce do banco, e senta ao lado deles.
- Quantas bodas nós completamos nesse casamento anatômico? Ainda me lembro do vendedor querendo me empurrar outros, mas eu e meus pés quiseram mesmo foi você. Já ouvi tanta piadinha por lhe usar demais. Há um monte de gente por aí dizendo que eu só tenho você. Há muitos outros lá no armário, tem aquele marrom escuro, aquele caramelo, aquele azul petróleo e até aquele outro preto, de fivela. Mas nenhum deles guarda o tanto de histórias que você. Formamos uma bela dupla, sabia? Você sempre me levou para onde eu quis e eu sempre lhe levei para onde queria ir. E, como bons amigos, eu nunca lhe dei chulé e você nunca me deu calos, joanetes, unhas encravadas... Lembra daquela vez que você se enroscou em um salto Luís 15? Foi paixão a primeira vista. Por quantas ruas seguimos aquela mulher. Você não parou até que eu puxasse conversa com ela. Mas o amor acabou quando ela pisou em você no meio de uma dança.
Ele ameaça calçar os sapatos, mas desiste. Volta a se sentar na banqueta, tentando se afastar da tentação.
- Meus pés descalços ficam tão nus longe desse seu couro, mas o destino quis assim. Quem sabe se eu lhe levasse em um restaurador de sapatos? O último sapateiro me garantiu que você não tinha muito tempo de vida. Pelo visto, acabou. Eu não imaginei que lhe você ia morrer justamente nos meus pés, em plena atividade. E agora, como é que eu vou para rua? Sem você, sou soldado sem coturno; mulher sem salto; mergulhador sem pé de pato. Quem sabe um pouco mais de graxa, de verniz, de super bond, de cola de sapateiro... - Deixa de ser egoísta, Pereira, não vê que os seus sapatos estão cansados? - Só vocês para me fazerem conversar comigo mesmo.
Ele sai do banco e coloca os sapatos no estofado. Em pé, continua o diálogo.
- O problema é que, assim como vocês, eu também quero me aposentar. Para que sair às ruas se eu posso ficar aqui? Afinal, já andamos tanto que poderemos ficar aqui, estáticos, por um longo tempo. Quem sabe vocês não se recuperam, não tomam novo fôlego. Tenho certeza de que não vão suportar ficar trancados por muito tempo sem sentir o asfalto queimando suas solas. Vou folgar o cadarço, para que possam respirar um pouco mais. Por enquanto, aqui pelo quarto, vou andar descalço. O chão é frio, áspero, sujo. Mas não vou trair vocês com nenhum outro calçado. Aquele chinelinho está doido para que eu dê uma volta com ele, mas vai ter que tirar seu cavalinho da chuva. Pois daqui, sem vocês, eu não saio. Daqui, ninguém, ou melhor, nenhum outro par de sapatos me tira.
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