20/09/2009 - Primavera no pé da serra
Hoje vou de chapéu de palha, bainha de canivete e bonita encerada pelos campos quase em flor. Vou montar no meu cavalo chamado Tempo e cavalgar pelas trilhas da memória sem ter hora pra voltar. Levarei no embornal arroz-feijão e torresmo e uma manga daquelas carnudas para poder ir o quanto mais longe. Vou seguindo os rastros que eu deixei, propositalmente e inconscientemente, pelas estradas que cruzei. Alguns rastros eu reforço, outros ignoro, e assim vou percorrendo os caminhos de dentro.
Vou sozinho, mas com tantas coisas batendo no peito, sacolejando ao ritmo do coração. E cada vez que o vento bate no rosto, reascende a chama do último beijo. E vou trotando, abrindo velhos caminhos, como adulto que volta a ser menino. E quando o sol aperta, parecendo descer pelas ladeiras do horizonte na banguela, eu apeio na beira do ribeirão. Água de mina, fria, cristalina. Água nascente, vinda do ventre da mãe Terra. E quando as pernas se espicham no campo orvalhado, sou tomado por um sentimento raiz.
É como se brotos saíssem da minha pele, querendo me prender naquele solo solitário. Em vidas passadas devo ter sido árvore, arbusto, erva daninha. Sou verde a ponto de viver longe de portas e paredes. Sinto-me mais forte, sinto-me entre o sul e o norte, mais feliz que boi de corte rompendo o estradão. Mas saudade de amor cala fundo e volto ao couro do Tempo, riscando seus dias com as esporas da minha ansiedade. Corro campos, apego-me com os santos, e parto rumo à cidade.
É hora de cavalgar olhando pra frente, como se eu fosse o próximo sol poente entrando naquela terra. Levo comigo apenas o gosto do mato, o som daqueles que ganharam asas e as cicatrizes dos espinhos. Abro porteiras, desço ribanceiras, cruzo palmas e palmeiras à procura do caminho de casa. Entre vales e desfiladeiros, vou, boiadeiro sem gado, aboiando pelo prado. Os olhos se fecham e o vento traz palavras de amor ao meu ouvido. Sento o reio no Tempo bandido e abro a porteira de casa, com minha amada me esperando na roseira em botão.
Então, ao primeiro beijo, explode a primavera no borrão da serra.
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