08/02/2009 - Pílulas, comprimidos, ampolas e loucura
Uma mulher, vestida inteiramente de branco, está sentada ao lado de frascos farmacêuticos e de uma infinidade de pílulas, comprimidos, ampolas. São dezenas, centenas, milhares deles espalhados pelo chão. Todos coloridos e de vários formatos. E é daquela posição mesmo, rodeada de seus melhores amigos, que ela dialoga consigo mesma.
- Chega de remédios. Chega desses comprimidos vermelhos, brancos, azuis, amarelos. São comprimidos grandes, pequenos, ovais, chatos, porosos e sintéticos. São drágeas e cápsulas difíceis de engolir. Isso sem falar das gotinhas amargosas. Nos últimos anos não tive outra leitura senão bula de remédio. E bulas não são romances que nos levam para territórios desconhecidos e apaixonantes. Bulas são técnicas demais. Além de uma linguagem técnica ao extremo, tem palavras que nem o dicionário dá jeito. E eu cansei de condicionar a minha vida a uma posologia. Eu não quero mais saber de sonos repentinos, molezas permanentes, enjôos ao amanhecer, cólicas ao entardecer, coceiras ao anoitecer. Isso sem falar das manchas e brotoejas que emanam da pele sem avisar. Minha vida se transformou em uma grande contra-indicação. Remédios para combater depressão, colesterol, triglicérides, excesso de peso, gravidez, cabelos fracos, tremores, pressão alta, pressão baixa, enxaqueca, labirintite, falta de ar, sinusite, tendinite, artrite, artrose, esclerose, osteoporose, arritmia, inchaço, pânico, prisão de ventre, azia, má digestão, soluço, resfriado, conjuntivite, garganta inflamada... Não quero mais armar meus glóbulos brancos contra fungos, vermes, bactérias, vírus... Se eles quiserem, que lutem no braço. Será que glóbulos brancos têm braço? Mas isso não importa. O que importa é que eu não quero mais ser dependente de remédio algum.
Ela se levanta com uma cartela de comprimidos na mão direita. Para ela, aquela cartela havia lhe falado algo desagradável. Aliás, desagradabilíssimo. E ela queria tirar satisfação a qualquer custo.
- O que foi que você disse? Repita, sua cartela insolente! Não sou hipocondríaca não! Eu tenho necessidade de tomar essas drogas. É uma questão de sobrevivência. Está achando que é brincadeira, pois não é? Se duvida de mim, veja como estou tremendo, ficando verde, com a vista turva. É falta de remédios. Se eu estivesse brincando não estaria sentindo nada. Mas se eu estou sentindo tanto, como é que vou ficar sem eles? Como disse, sou dependente e não uma hipocondríaca idiota. A maioria deles foi receitada pelos médicos. Cardiologistas, ortopedistas, ginecologistas, oftalmologistas, endocrinologistas... istas, istas, istas... Isso sem falar nas garrafadas dos curandeiros, das rezas das benzedeiras, dos chás receitados por parentes, vizinhos e conhecidos. Realmente, faço de um tudo. Pode parecer exagero, mas sinto tantas dores, queimações, inquietudes que fica difícil não cair em tentação. E o medo de não tomar nada e o médico me receitar um tango argentino, como fez com aquele personagem do Manuel Bandeira? Eu odeio tango. Entro em depressão crônica só de ouvir aqueles acordes tristonhos. Ah! Já começa a me dar um mal-estar, um engasgamento, uma vontade de chorar.
Ela anda em círculos, tenta, mas não consegue se afastar dos remédios. Eles a atraem de tal forma que ela não consegue se divorciar deste casamento maléfico e em constante crise.
- Fui uma tola. Tentei curar a minha vida com essas pílulas de ilusão. É como tomar água ou farinha, mas eu achei que faria bem. Aonde já se viu curar amor mal curado com remédio. Desilusão amorosa, insatisfação no trabalho, rebeldia de filho, descontentamento com a cidade, vontade de viajar pelo mundo, sonho de um corpo melhor, medo de escuro... De um tudo eu procurei curar com remédios. E bem que o psicólogo me avisou que eu andava por um caminho sem volta. Mas eu preferia escutar aqueles farmacêuticos de quinta, que vendem sem receita. Chegaram a dizer que eu tinha tara com homens de branco. Mas é mentira. Eu já me apaixonei por alguns médicos, enfermeiros, instrumentistas, mas nada tão forte quão a minha frustração de não ter sido médica. Veja só, ando toda de branco, vivo me internando, experimentando remédios e mais remédios. Adoro me automedicar. Mas eu nunca consegui seguir esse sonho. Aliás, eu o deixei de lado. Procurei matá-lo com doses cavalares de antidepressivo. No entanto, ainda não há vacina contra esse tipo de mal. Por mais tranqüilizantes que tome, tenho pesadelos com essa minha fantasia. Eu, de médica, me operando. Chego a ter um bisturi nas mãos cortando a minha própria carne. E o que tiro de lá de dentro? Tumores, tripas, gordura? Não, retiro uma boneca. A Lili. Quando pequena, brincava com ela de estetoscópio. Desde a infância esse desejo de ser médica me persegue. E eu pego aquela boneca e choro e tento estrangulá-la e tento cortá-la, mas ela continua intacta dentro de mim.
A mulher soluça em pranto, agacha e passa a mão entre os comprimidos, como que escolhendo. Ao encontrar o que procura, eleva-o até a boca e engole. Quase engasga. Por sorte, havia um copo com água por ali.
- É só um. Eu juro, só um comprido. Esse é um ativador do hormônio que desperta a sensação de alegria. Essa história da Lili me deixou cabisbaixa. Mas se eu ficar alegre, meu coração vai acelerar. E daí eu vou ter que tomar um outro para não deixar o ritmo extrapolar. Ai meu deus, começou uma febre. Quem sabe se eu respirar mais devagar ? um, dois, três, quatro... Ah! Agora sinto uma falta de ar dos diabos, vou ter que ingerir o comprimido dos pulmões. E os rins? Parece que eles não estão filtrando direito! Onde está aquele remedinho alaranjado? E esse braço formigando? Será o coração? Aquele complexo de maracujá seria ótimo nesse momento. Mas não sei onde o guardei. Essa caixa de primeiro socorros está uma bagunça. O pior é que essa falta de paciência azedou alguma coisa no meu estômago e já está subindo uma vermelhidão na pele. Preciso de um sal de frutas urgente e um gel antialérgico também. O meu pulso está galopando. Socorro! Chamem um médico, aliás, chamem o hospital inteiro. Quero uma UTI móvel!!! Vou morrer. Aliás, estou morrendo. Onde está aquele calmante a base de flor que o doutor Onofre me receitou? Onde estão as velas relaxantes importadas da índia? Onde está aquele remédio que coloco debaixo da língua? Quero dois deles!
A mulher ingere um punhado de remédios e desmaia. Não sei se de loucura ou de overdose, mas ela cai de olhos fechados. Será o fim? Talvez houvesse esperança. Na lógica de sua loucura, ao não conseguir se auto-salvar, ela se salvaria.
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