Daniel Campos

Texto do dia

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07/07/2009 - Pai, mãe, edifícios

Diante de um prédio residencial, um garoto pára sua bicicleta e eleva seus olhos. Entrando em uma espécie de elevador imaginário, percorre os dezessete andares daquela construção. Ele que mora em uma casa de três cômodos com mãe, três irmãos, avós e dois cachorros magricelas como sua bicicleta fica se perguntando como é morar nas alturas. Seus olhos vão escalando janela por janela e quando acha uma delas aberta, sua imaginação se redimensiona e, montada na curiosidade, não se faz de rogada: entra sem pedir licença.

Imagina então salas espaçosas, quartos com armários cobrindo paredes, banheiros com largos espelhos, mesas fartas em quitutes, televisões de última geração, lustres em feito dos que aparecem em filmes americanos, cortinas de madame, banheiras com espumas, quadros coloridos pelas paredes, sofás pomposos repletos de almofadas estufadas, lençóis macios e limpos, vasos de flores gigantes, tapetes felpudos, litros e mais litros de bebidas importadas, empregados uniformizados a postos.

Quando imagina os empregados engole a seco. Pudera, sua mãe há muito tempo trabalhou em um desses apartamentos e se deixou seduzir como ele por aquele mundo suspenso. Afinal, ele se encantava e se assombrava com as memórias da mãe. Ia do luxo ao lixo em poucos segundos. Quando seus pensamentos passam dos móveis de mogno, dos arranjos de flores, das taças de champanhe para as violências e medos que cercaram sua mãe naquele mundo, seus olhos despencam lá de cima, em queda livre, arrebentando-se contra o chão.

E é no chão, com olhares ensangüentados e quebrados, que ele cai em si e percebe que em um daqueles apartamentos pode estar o pai que nunca conheceu. Seu pai, o ex-patrão de sua mãe. Ao contrário de socorrer seus olhares e colocá-los novamente para voar, prefere fechar os olhos e pedalar. Pedalar cegamente pelos edifícios que escondem parte de sua história, de sua identidade, de sua construção.


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