06/06/2009 - Os sapatos não falam
Os sapatos, no canto do quarto, longe dos pés da mulher amada, nada falam. Sandálias, botas, scarpins, chanels, peep toes, bico fino, salto alto, sapatilhas... ficam, aos seus pares, se olhando, se tocando, esquerda e direito se flertando num silêncio fundo. Contemplações à parte, como é triste o silêncio de couro de seus sapatos. Eles não clamam, eles não recitam, eles não palpitam, eles não cochicham, eles não sussurram, eles apenas suplicam, mudamente, pelos pés de quem os dá língua, cordas vocais e sentimentos.
Sozinhos, jogados em um dos quadrantes do quarto, não são capazes de dizer uma só palavra. São como abajures apagados. No entanto, quando no bailar dos pés da mulher amada, eis que eles cantam afinadamente minuetos completos. Os sapatos, que eram mudos, passam a protagonistas de um espetáculo único. Quando a mulher amada passa pelas calçadas de pedras portuguesas seus sapatos assoviam árias austríacas; quando ela sobe uma escada em círculos, falam tortamente pelos cotovelos; quando rodopia em torno de seu eixo gravitacional, gritam pedindo bis.
Em movimento, os sapatos da mulher amada falam diferentes línguas e linguagens, sobre todo e qualquer assunto. Falam baixinho e sedutoramente e se alvoroçam numa gritaria, chegando a ser poetas e poesia ao mesmo instante. No entanto, quando a mulher amada os tira e caminha descalça pela casa, eles perdem a memória, a glória e a própria história, calando-se em causas e conseqüências. Longe dos pés da musa, os sapatos são como pandeiros sem mãos ou trompetes sem bocas, belamente plásticos, mas completamente violados em sua essência.
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