Daniel Campos

Texto do dia

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19/07/2009 - O último pôr-do-sol

Ela o pegou pela mão, subiu as escadas sem corrimão e chegou ao alto da construção só pra ver o sol se desconstruir entre vergalhões, concreto armado e andaimes. Ela havia se tornado amante do pôr-do-sol depois de seu primeiro beijo. Perdera a conta de quantos sóis em queda fotografou, com máquinas ou olhares, ao longo da vida. Foram tantos. Da rua, do morro, da favela, do barco, da janela, do arco da velha, da sacada, do campo... Tinha uma coleção de sóis poentes nos mais diversos lugares, sob vários ângulos e perspectivas. No entanto, aquele era especial.

Foi ali, na época um terreno baldio, que deu seu primeiro beijo. Ao menos, o primeiro beijo naquele homem quem estava ao seu lado. Ela jurava que era o primeiro, mas havia quem contasse outra história. Seja como for, era amor demais. Nove anos juntos. Nove anos em conjunto. Só que o cenário da primeira daquele romance, um terreno baldio ao lado da escola, agora estava em transformação. Depois de anos cercado por um muro pichado e habitado por um mato meio verde meio amarelo, seu palco estava em transformação.

Absurdamente, aquilo tudo mexia com ela. Era como se a história daquele amor fosse revirada por máquinas e homens, violentando-a. O terreno baldio iria virar um prédio comercial. Ela que sempre sonhou fazer daquele lugar sua casa, enlouqueceu. Mais do que uma foto do sol se pondo, queria agora um beijo perdido entre o azul do dia, o vermelho da tarde e o negro da noite. Um beijo degrade, decompondo em milhares de tonalidades e saudades. Entre o barulho das betoneiras e das marretas, ela concretou seu beijo.

Os operários não entenderam nada. O mestre-de-obras tentou impedir tudo aquilo. Mas ela precisava fechar um ciclo. Ela que nunca achou que iria ter de se separar daquele terreno, silenciou-se em um beijo. Foi naquele mesmo cenário, nem dia nem noite, com um sol alaranjado pedindo licença para sair de cena, que seus lábios se mancharam de desejo e paixão. Só que desta vez, não teve o mesmo gosto. Seja pelas obras, pelo barulho, pela platéia, o beijo se desfez no ar. E ela deixou o namorado e saiu correndo entre britas e areias, com a boca aberta, como que querendo engolir aquele último sol.


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