11/01/2009 - O tempo que divide
Entre o vento da serra e as folhas rosadas que se misturam ao chão, um homem pára diante de uma porteira fechada. Com olhos de engenharia, observa aquelas tábuas paralelas e diagonais de madeira avermelhada e começa a conversar com alguém. Embora só exista ele e a porteira, ele insiste...
- Quantas vidas se encontram e se separam aqui. Quantas despedidas, quantas partidas, quantas chegadas, quantas estradas e pegadas nascem e morrem aqui. É como se essa porteira fosse sua morada, não é tempo? É aqui que você se faz mais forte. Muitos pensam em relógios, em ventos, em calendários para lhe definir... mas nada se parece melhor com você do que essa porteira. Porteira vermelha, estradeira, traiçoeira. É como se esse monte de tábuas fosse como a folha de um livro que eu nunca li, causando medo e desejo. Quantos destinos que se dividem por essa arquitetura tão simples quão complexa. Ah! Talvez deus, ao se indignar com suas travessuras, decidiu lhe aprisionar no corpo de uma porteira. Ou talvez o demônio, o diabo dos sete infernos, amaldiçoou o mundo com essas porteiras temporais. Aqui, por essa madeira, corre o seu veio, o seu veio tempo. Se divino ou se diabólico, o que importa é que este veio não pára de correr. E são tantas velhices, crendices, tragédias, epopéias, doenças, dores e amores correndo neste veio que desafia a cerne do mundo.
Mesmo com todo receio, o homem se apóia na porteira. Coloca a palma de uma das mãos, e continua a conversar com aquela passagem...
- Cada pessoa que passa por aqui é vítima. Uma vítima a mais. Uma vítima atraída pelo desconhecido, pelo mistério, pelo novo. Há uma espécie de guardião que habita esse lugar. Não há erva daninha que nasça aqui. Mas também não há flor. Não há bolor, vento, caruncho, chuva, formiga cabeça de vidro que tenha coragem de lhe destruir. Ninguém ousa enfrentar o tempo. Há quantos séculos você vive aqui nesta porteira. Porteira vermelha. Olha a solidão a sua volta. A terra é batida. O mato é calado. A árvore é distante. E os espíritos que vivem por aqui, abençoando ou amaldiçoando a sorte dos que passam, escondem-se ligeiros para que ninguém decifre o mistério que há nesse lenho. Eu sei o que você diz. Eu sei o que é capaz de fazer. Eu sei o que quer. Eu sei o peso e as asas que se adquiri a partir daqui. Há quem passe por essa porteira e leve o peso do universo nas costas. E há quem saia voando pelos céus, na ilusão de que o tempo sopra ao seu favor. No entanto, quem passa por essa porteira, pelos véus do tempo, comete o pecado. É como se a porteira se abrisse como pernas que levam ao pecado original. A partir dessa porteira, o mandamento se inverte, e o crescei-vos e multiplicai-vos torna-se amai-vos e sofrei-vos. Escutou tempo, amar e sofrer, esse é o seu código. O código do tempo. A vida em torno do amor e a morte, na metáfora do sofrer. Amando e sofrendo, vamos vivendo e morrendo a cada dia, a cada semana, a cada mês...
O homem pede licença e sobe pelas tábuas avermelhadas, equilibrando-se com os braços abertos, compondo ali uma espécie de cristo.
- Por que tempo, por que insiste em me perseguir? Se você me deixasse eu seria mais feliz. Eu cantaria livre por um universo atemporal. A existência seria redefinida. Nada mais giraria em torno de seu umbigo, tempo. Nada mais. Você é horrível, devastador. Embora eu não consiga ver ninguém aqui, eu posso sentir algumas, dezenas, centenas, milhares de pessoas atravessando os seus domínios, enredando-se em suas conversas tolas. E eu não quero ser mais uma de suas vítimas.
Ainda sobre a porteira, o homem olha o que está por detrás de suas costas...
- Tudo o que ficou para trás você consumiu com furor. No meu rastro, há os meus passos e os seus. Sobrepostos. Quando não anda agarrado aos meus pés, abraçado a minha cintura, sou obrigado a lhe levar nos ombros. E você anda com a morte em suas mãos. E a morte, em suas mãos, é como uma espada. Você corta, você decepa, você fere, você mata o concreto e o abstrato, o real e o sonho. O que lhe importa é levar pensamentos, obras e sentimentos ao chão. Você se alimenta disso, não é tempo? Ah tempo, por que tem que destruir tudo? Você sempre nos deixa tão pouco. Tantas perdas se espalham pelo caminho. Tanta coisa já ficou que é impossível não se sentir sozinho. E o pior é que você ainda me oferece essa estrada longa pela frente. É uma armadilha, eu sei que é uma armadilha. Cair nesse jogo é só perder mais. É provocante, tentador, mas as perdas são certas. E como contra-oferta, você oferece muito. Aliás, você oferece um tesouro perdido. São tantas iscas a nos excitar, a nos incitar a lhe seguir. E há milênios você nos fisga, nos captura e nos devora com sua mandíbula. E sua mordedura abre e fecha como essa porteira, que nos tange enquanto range palavras obscenas aos nossos ouvidos. E o que há tão logo ali à frente? Será terra batida ou movediça? E eu aqui também me divido. É uma vontade de ir, incontrolável, é uma vontade de ficar, irremediável... Eu vou ficar no passado, em terra firme, só vou me esticar um pouco para ver o que há do outro lado. Que mundo é esse que esconde? Espiar não mata ninguém. Eu quero ver adiante, mas eu vou me controlar, eu vou me segurar, eu vou me agarrar aos seus cabelos...
A curvatura do homem faz o trinco se abrir e a porteira começa a ranger, desbravando o futuro. O homem fecha os olhos, tenta impedir aquele movimento, mas se desequilibra e cai ao chão, já do outro lado. Ao levantar a cabeça, o homem não acredita que, por mais uma vez, o tempo havia dividido sua existência.
- Nãoooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo!
O homem chora um choro recém-nascido, reúne forças, e começa a se arrastar, a engatinhar, a caminhar, deixando para trás da porteira vermelha suas memórias, suas histórias e o futuro que tanto temia...
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