Daniel Campos

Texto do dia

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16/10/2012 - O negro e o STF

Na fachada do Palácio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, assim como na do Congresso Nacional e na do Palácio do Planalto, predomina a cor branca. No caso específico da mais alta corte do país, a composição dos ministros é tão branca quão a pintura externa.

Em mais de 100 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve apenas três ministros negros: Pedro de Lessa (1907 a 1921), Hermenegildo de Barros (1919 a 1937) e Joaquim Barbosa (2003).

É pouco. Aliás, é muito pouco em se tratando de um país que, segundo o Censo de 2010 do IBGE, declara-se cada vez mais negro. Porém, para fazer justiça à realidade, os presidentes, que desde o início da República são brancos, precisam indicar negros ao STF.

Representantes do patrimônio vivo dos povos da África devem compor a corte de maneira mais expressiva, deixando claro que a Justiça não tem cor.

Saindo do mundo formal, da letra da lei e dos domínios de Artemis, a famosa deusa grega que, de olhos vendados, tem assento na Praça dos Três Poderes, trago à tona os versos daquela canção de criança “Um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam, incomodam muitos mais”.

Pois bem, um negro no STF incomoda, incomoda, incomoda muita gente.

Ainda mais um negro como Joaquim.

Joaquim Barbosa não é somente negro. É negro de origem pobre. Negro do interior do Brasil. Negro das Minas Gerais. Negro filho de pedreiro e de dona-de-casa.

Negro primogênito de oito filhos. Negro que viu seus pais se separarem cedo. Negro que se tornou responsável pelo sustento da casa. Negro arrimo de família. Negro que aos 16 anos deu um grande passo em sua vida, assumindo riscos de gente grande.

Fazendo valer o provérbio africano de que “a esperança é o pilar do mundo”, Joaquim foi à luta.

O negro colocou os pés na estrada. Saiu de Paracatu para tentar a sorte em Brasília, onde conseguiu emprego para sustentar a si, sua mãe e seus irmãos. Foi também na capital que concluiu o segundo grau. Um negro de colégio público.

Negro sonhador. Negro faxineiro. Dividia o dia entre a escola e o trabalho. Trabalhava limpando os banheiros do Tribunal Regional Eleitoral de Brasília. No mesmo retrato, a exclusão racial do AfroBrasil e a superação de um negro que venceu estereótipos e lugares comuns.

Negro de sonhos grandes como tantos outros negros espalhados por esse Brasil negro, mulato, miscigenado e... Racista.

B-R-A-S-I-L R-A-C-I-S-T-A.

Desde menino, para superar o racismo, colocou a educação como meta. Determinado, estudou, estudou, estudou. Estudou línguas e se apaixonou por elas. Um negro fluente em inglês, francês, alemão e espanhol.

Um negro que não queria ser tratado diferente por ser negro, mas ser tratado igual por ser humano.

E como para ser negro no Brasil é preciso mostrar seu valor diariamente, fazendo de um tudo bem feito, Joaquim se destacava.

Se fosse para limpar o banheiro do TRE, com honra e dignidade faria uma limpeza impecável. Se fosse para cantar em inglês, tanto pronuncia quanto afinação tinham de ser perfeitas.

E foi cantando em inglês no banheiro do tribunal, durante uma faxina, que um diretor se espantou não só com o talento, mas com a educação e a força de vontade daquele negro.

Ao contrário de tambor e berimbau, o negro Joaquim desde os 16 anos toca piano e violino.

O negro e a nobreza. O negro nobre e o nobre negro em uma só criatura.

Joaquim agarrava trabalhos, desafios e estudos com unhas e dentes. Formou-se em Direito pela UNB. Negro diplomado. Na época, o único negro da faculdade.

Fez mestrado em Direito do Estado, também na Universidade de Brasília.

E vieram os concursos públicos. Um negro de resultados. Resultados positivos, diga-se de passagem. Como concursado, foi Oficial de Chancelaria do Ministério das Relações Exteriores, tendo serviço na Embaixada do Brasil em Helsinki, Finlândia. Em seguida, foi advogado do Serviço Federal de Processamento de Dados.

Prestou concurso público para Procurador da República e foi aprovado. Na década de 1990, licenciou-se do cargo e foi estudar na França por quatro anos, onde fez mestrado em Direito Público e doutorado em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas).

É professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde ensinou as disciplinas de Direito Constitucional e Direito Administrativo. Foi visiting scholar (1999-2000) no Human Rights Institute da Columbia University School of Law, New York, e na University of California Los Angeles School of Law (2002-2003). Fez estudos complementares de idiomas estrangeiros no Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Áustria e na Alemanha.

Um negro tupiniquim com o pé no mundo.

Querendo mais, Joaquim prestou concurso para a carreira diplomática. Foi aprovado em todas as etapas e ficou na entrevista: a única na qual a cor de sua pele era identificada. Um drama de muitos negros brasileiros.

A partir do episódio, sua consciência racial, que começou a ser construída ainda pequeno, ganhou ainda mais força. Tanto que no STF foi defensor ferrenho do sistema de cotas que garante vagas universitárias específicas para estudantes negros.

STF? Sim, quando o operário Lula assumiu a presidência do Brasil, quis deixar uma marca. Nomear o primeiro negro do STF (a mídia sempre se esquece dos outros dois).

Porém, não se pode dizer que Joaquim esteja no Supremo apenas pela cor de sua pele. O currículo deste negro mostra justamente o contrário.

Joaquim não entrou pela cota racial, mas pela cota da competência.

Basta ver sua atuação altiva (um negro que não engole sapo) ou a consistência de seus votos (um negro extremamente qualificado).

Até o fim de setembro de 2012 seus votos haviam acompanhados por unanimidade em 90% das ocasiões.
Um feito raro, que demonstra o fato de Joaquim ter transcendido a sua cor. Deste modo, Joaquim fez o que todo negro almeja - mostrar do que o negro é capaz.

Logo no início, Joaquim Barbosa declarou em uma entrevista: pensavam que eu era um negro submisso...

E de submissão não havia ou há nada em Joaquim.

Joaquim é a lei áurea em carne e osso, a carta de alforria de tantos negros como ele, o quebrar dos grilhões...

Como ministro, é o negro botando para quebrar.

Demonstra defesa incondicional em certas questões. É o único ministro abertamente favorável à legalização do aborto; é contra o poder do Ministério Público de arquivar inquéritos administrativamente, ou de presidir inquéritos policiais. Defende que se transfira a competência para julgar processos sobre trabalho escravo para a Justiça Federal.

Defende a tese de que despachar com advogados deva ser uma exceção, e nunca uma rotina, para os ministros do Supremo. Barbosa opõe-se, também, ao foro privilegiado para autoridades. No polêmico julgamento das células-tronco, Joaquim Barbosa votou a favor da liberação de seu uso para fins de pesquisas.

Tomou posse como vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral em 2008 e só não assumiu a presidência dois anos mais tarde por problemas de saúde.

Um problema no quadril o obriga a ficar horas em pé. Talvez porque ele, como naquele poema de Drummond, precisa sustentar as dores do mundo sobre os ombros.
E as dores do mundo negro pesam.

No entanto, deixou marcas em sua passagem pelo TSE. Joaquim Barbosa votou a favor da tese de que políticos condenados em primeira instância poderiam ter sua candidatura anulada, sendo, porém, voto vencido nesta questão.

E no chamado “julgamento do século” os olhos do Brasil e do mundo se voltaram para o ministro negro, relator do mensalão.

Em razão da sua personalidade forte e da sua atuação não menos forte, não se pode ficar em cima do muro em relação a Joaquim. Quem gosta, ama. Quem não gosta, odeia. Já bateu boca com outros ministros.

Lula indicou Joaquim, que jamais viu em Lula uma espécie de padrinho. Ao contrário de beijar-lhe a mão, Joaquim dissecou as entranhas do governo Lula e do PT no julgamento do “mensalão”.

A Justiça acima de tudo e de todos.

Nas redes sociais, Joaquim Barbosa conquistou a popularidade dos internautas sendo chamado de herói. Herói negro. Querem Joaquim na presidência do Brasil. Campeão de popularidade, virou até máscara de carnaval.

Um super-herói que ao contrário da capa, usa toga.

Um zumbi contemporâneo.

Um símbolo da chamada “meritocracia”.

Um magistrado negro aplaudido nas ruas, ovacionado nas redes sociais.

Um negro que superou obstáculos sociais e materiais.

Uma presença única que significa a conquista de um espaço de reconhecimento de muitas populações negras que deram seu sangue ao Brasil - sangue negro.

Ainda é cedo para fazer uma análise. Porém, daqui a cinquenta, cem anos, duzentos anos, a sociedade vai reconhecer as consequências libertárias da atuação de Joaquim.

A pátria de Macunaíma que celebra heróis sem caráter desde a chegada das primeiras caravelas portuguesas em solo brasileiro parece ter encontrado um herói de verdade.

Ao assumir em novembro de 2012 a presidência do STF, Joaquim se firmará na história não só dos negros, mas dos brancos, dos vermelhos, dos amarelos, dos coloridos do Brasil.


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