09/06/2009 - O blues e a miséria humana
Depois de uma série de discussões com seu namorado, com sua mãe, com seu chefe, com o motorista do ônibus, com a caixa do supermercado, com o relógio e o espelho, ela se deu por vencida. Saiu então pelas ruas à procura de uma grande corda de descarga que pudesse puxar e mandar todos seus aborrecimentos e insatisfações pelo esgoto afora. Mas não era tão fácil assim se livrar das impressões do cotidiano que lhe sujavam o corpo e a alma. Sentia-se incomodada com aquele acúmulo de coisas ruins. Era preciso se livrar daquela sobrecarga de desgraças de algum jeito. Só que ela, ao longo dos anos, tornou-se especialista em engolir sapos. Não sabia vomitá-los com a mesma facilidade com que engolia.
Sempre colocou todo o peso das coisas e dos fatos sobre suas costas. Nunca provocou uma rebelião exterior ou interior, mesmo que fosse com seus botões. Se pudesse entrar em um casulo e ficar ali, por semanas, até nascer uma nova mulher, mais leve e sem problemas, e com grandes asas rosadas, tudo seria maravilhoso. Mas o ato de virar borboleta não depende da vontade da lagarta. E isso a fazia rastejar pelas ruas ainda mais indignada e desacreditada, procurando a tal corda que lhe pudesse exortar toda sua problemática. Era preciso desabafar, mas não havia ouvido algum por ali. E ela não agüentava mais escutar a si própria. Ela já não se suportava mais. Queria divórcio, desquite, separação de corpos.
As ruas eram longas e vazias. Se ainda encontrasse um chuveiro, poderia se lavar daquela vida imunda que andava levando de modo que aborrecimentos, mágoas, frustrações escorressem pelo ralo. Mas, assim como a corda da descarga, não havia chuveiros dependurados naquela noite escura. Pensou em despejar tudo em uma daquelas bocas de lobo, mas elas já estavam entupidas de outros lixos. Foi quando encontrou um imenso container enferrujado, repleto de gatos magros e mendigos mal-educados. Sem pestanejar, tirou cada uma de suas peças de roupa e atirou ao meio de restos de comida, papéis e plásticos. Ela não se intimidou nem mesmo com as palavras despudoradas de quem revirava aquele lixo.
Naturalmente, deixou suas vestes ali, como que se libertando de uma casca, e saiu completamente nua pelas ruas da metrópole assoviando um blues.
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