05/04/2009 - Não diga mais nada
Uma mulher, sentada na beira de uma ponte, olhava seu reflexo na água e, para espanto de quem passava por ali, conversava com ele (o reflexo), ou melhor, com ela:
- Não diga mais nada. Eu não quero ouvir suas acusações. Também não quero escutar seu silêncio condenatório. Vá ao terapeuta. Vá ao psicanalista. Vá ao cardiologista cuidar desse coração inconsequente. São tantos absurdos, são tantos abusos, são tantos maus-usos dos sentimentos. Vê se me tira do banco dos réus ao menos por alguns minutos de seu dia. Você não vê que esse seu espírito promotor só promove a nossa destruição. E eu não quero destruir nada.
A mulher se levanta, ameaça ir embora, o reflexo vai se perdendo, porém ela volta, deita no deck, se inclina ao máximo para aproximar seu rosto mais e mais da superfície da água. Ela e seu reflexo quase se beijam, quase se mordem, quase se misturam. E ela continua aos gritos:
- E por falar em nada, não diga mais nada. Não quero saber dos seus delírios, das suas insanidades, das suas inverdades. Chega de achismos, de cenários hipotéticos, desse seu jeito frenético de encarar as coisas. Desce do trono. Desce do altar. Desce do salto. Não me olhe de cima. Não me venha com ordens ou mandamentos. Esse seu discurso já está para lá da Faixa de Gaza. Eu quero paz. Deixa de briga, deixa de enfrentamento, deixa de atirar pedras a todo instante e, por nada.
Ela se levanta, pega uma pedra e, como que ameçando atirar contra aquele rosto, reabre o diálogo, agora em pé. No entanto, como natural ao reflexo, aquela imagem projetada também ameaça lhe apedrejar:
- E falando em nada mais uma vez, não diga mais nada. Deixa de lado esse mau-humor, esse rancor, esse temor e coloca cor na sua vida e na vida que lhe rodeia. Chega de querer viver ou de querer criar infernos. Ao menos uma vez, tome o caminho do paraíso. Não grite. Não bata. Não taxe. Não marche. Peça pra sua tropa de choque voltar. Peça pros seus tanques não atirarem. Sai da trincheira, tira de si essa blindagem e deixe as flechas dos cupidos lhe atingirem de uma vez.
Ao final, ela atira a pedra no lago com tal força, que o reflexo se desmancha. No entanto, ela também é atingida por uma espécie de pedra imaginária. Ela coloca a mão no rosto, tontei e cai, como que se desmanchando ao chão que todos passam.
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