Daniel Campos

Texto do dia

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31/05/2009 - Mundos e mais mundos

Um homem, de mangas de camisa, caminha em círculos, sem pressa, mas com uma agonia estranha em seus passos. Quando chega ao centro do palco imaginário em que se encontra, retira um pedaço de giz do bolso e começa a riscar uma linha de fora a fora. E se posiciona no lado direito.

- Pronto! Agora o mundo está dividido ao meio. No tempo que eu era criança sempre existia a rua de cima e a de baixo. Eu tinha de me contentar em jogar bola na rua de baixo. A de cima era comanda pelos meninos que tinham mais força, dinheiro e a simpatia das meninas. Já na escola, o mundo era dividido entre meridianos e trópicos. Como era mesmo aquele nome que fatiava o mundo em duas metades de laranja? Greenwich! Lembro que tirei uma nota baixa por errar o nome dessa linha imaginária. Também aprendi que a história é dividida em antes e depois de Cristo. Depois, fui descobrindo que o mundo era dividido entre ricos e pobres, mocinhos e bandidos, brancos e negros, crentes e descrentes, capitalistas e socialistas... Agora, eu invento mais uma divisão. O mundo com e o mundo sem mim. É claro que o mundo comigo é bem melhor. Portanto, podem vir para o meu lado.

Ele olha dos lados à procura de alguém. E continua dialogando consigo mesmo.

- Bando de ingratos. Estou dando a oportunidade para ficarem ao meu lado e ninguém aparece. Eu tenho o giz, eu faço a linha, portanto, sou o rei do mundo. Ao menos, deste mundo que criei. Tudo o que existe deste lado é meu. Montanhas. Árvores. Rios. Prédios. Bancos. Aviões. Fome. Miséria. Abandono. Dor. Bem, quase tudo é meu. Há coisas e coisas. E dentre essas muitas coisas há coisas que eu não quero para mim. Eu preciso batizar essa linha. Não sou prepotente o suficiente para emprestar meu nome a ela. Na verdade, eu não quero que meu nome se resuma a uma linha. Quem sabe: linha do desconhecido. Do outro lado eu não me conheço. Aliás, eu não conheço nada do outro lado. O que será que existe para além dessa linha. Calma! Que tentação é essa percorrendo minhas ventas. Só deve ser conspiração do fim do mundo. Afinal, querem que eu me aventure ao desconhecido ao ponto de me perder só para ficarem com o meu reino. Por falar em reino, onde estão meus castelos, meus súditos, minha cavalaria, meu bruxo particular? Preciso urgentemente falar com meu bruxo particular para que ele descubra o que existe para além dessa linha. Será um dragão? Ou será a princesa.

O homem se desespera, se aflige, grita por dentro e por fora. Chama pelo nome da criatura amada.

- Eu não posso ter prendido a minha bem amada do outro lado. Como sou inconseqüente. E se eu tiver nos separado para sempre com essa maldita linha. Já me arrependo de ter traçado o destino com esse pedaço de giz. Ela não surge. Ela não me responde. Ela não cabe em um mundo pela metade. E o que eu tenho aqui é um mundo pela metade. Eu sonhei Deus e acabei no pesadelo do demônio. Eu quero sair daqui e não posso. Tornei-me prisioneiro do meu sonho. E o grande problema é que meu sonho foi corroído pelas traças da realidade antes mesmo de vingar. E por que eu escolhi justamente esse lado? O lado contrário ao da mulher amada, a da minha antiga casa, ao do meu cachorro perdigueiro, do riozinho bordo. Ah! Eu que sempre tive pensamentos de esquerda acabei ficando na direita do mundo. Agora, resta-me assumir a faceta autoritária e conservadora dos que aqui habitam e sobreviver.

Ele tenta, mas não se conforma com a idéia de viver ali. Então, tenta ultrapassar a tal linha.

- Eu quero, mas não posso. Não é ético trocar de lado no meio da batalha. E isso aqui se configurou em uma batalha. O sangue já escorre ao norte. A marcha militar já avança ao sudoeste. Eu não seria aceito do outro lado. Seria perseguido, condenado, morto. Se ao menos eu pudesse me esconder. Poderia ir para casa, mas já devem ter invadido minha casa. Poderia ir para a igreja, mas já devem ter convencido meu santo a me trair. Poderia ir para os braços da mulher amada, mas ela, sabedora do meu ato, deve me receber com três pedras na mão. E se for para amar em pedras, prefiro ausentar-me do amor. Se ao menos eu pudesse conversar com alguém, pedir alguns conselhos ou apóio bélico. Mas eu estou sozinho. Quis o anjo da ironia que o meu mundo fosse só e somente só meu. Por isso eu tenho certeza de que o outro lado é muito maior. Porém, não me cabe recuar. É preciso enfrentar. Que venham as hordas. Afinal, a lógica é que queiram dominar o meu mundo, expandir seu território, conquistar o que ainda me resta. E o que me resta sou eu e esse pedaço de chão, sem propósito ou futuro. Um metro e setenta centímetros de chão. Um chão feito de carne vermelha, ideal para o menu dos carnívoros. Mas eu hei de lutar. Afinal, eu também posso conquistar o outro lado. E se eu conquistar o outro lado, reconquistarei minha amada, minha casa, meu cachorro e, até mesmo, o rio de águas bordo. Que comece o confronto.

O homem esforça a vista tentando encontrar os inimigos, mas o sol arde em sua cabeça. O silêncio o castiga. Chega à noite e o sono lhe pesa. Eis então que, mesmo contra sua vontade, ele tonteia e cai ao chão. Cai de forma que da cintura para baixo fica do lado esquerdo e da cintura para cima, do direito. Era um homem dividido entre dois mundos. Ao bater com a cabeça no chão, acorda e teme.

- Quietos. Quietos todos. Não sei de onde veio esse tiro que me prostrou, mas ainda bem que durante a noite todas as linhas são devoradas pelas sombras. Durante a noite, não existem divisões, limites, linhas, faixas... todos os mundos se unem contra o mundo da escuridão.


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