23/06/2009 - Morte na contramão
Do silêncio fez-se a tragédia. Ao som bruto dos pneus se rasgando no asfalto, tombam, de formas distintas, o assassino e a vítima. Ele não queria matar, mas o desejo de vencer as horas não o fez enxergar o limite de velocidade, o semáforo vermelho e a menina que atravessava a rua, com material de escola na mão. Num súbito, o grito da menina se perde na cabeça do homem que não pode mais fazer nada. O pé busca o freio, mas a morte, vestida de preto, já espera ao lado apoiada em sua foice. O carro derrapa, mas avança e violenta o corpo daquela virgem.
A menina, como nos sonhos mais infantis, voa. Voa alto e longe. No entanto, entre a terra e o céu, dá-se conta de que não tem asas. E então, começa a cair vertiginosamente. Tudo é tão rápido para quem está de fora. Mas para aquela criança quase crescida, o vôo durou uma eternidade. E ela pediu tanto para que aquilo não fosse verdade, para que acordasse em sua cama suada do pesadelo ou que um anjo lhe segurasse no colo. Mas quisera o destino que seu corpo fosse seguro apenas pelo asfalto. E o piche negro, ao abraçar aquele corpo infante, manchou-se de vermelho.
As sirenes dos bombeiros, das ambulâncias e das viaturas policiais se misturam. A esperança e a descrença também se misturam. Os curiosos das ruas, dos prédios, das lojas a essa altura já se misturam. Os únicos que não se misturam são vítima e assassino. Embora ele negue tudo, o espelho retrovisor do carro ressalta sua feição de bandido. Já a menina, plantada na dureza do asfalto, era o próprio espelho de uma plantação de sonhos e planos, ainda em brotos.
Da tragédia fez-se o drama. A cena que gerou piedade e silêncio, logo foi invadida de buzinas e palavrões. Afinal, tanto assassino quão vítima atrapalhavam o trânsito de outros assassinos e vítimas.
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