Daniel Campos

Texto do dia

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15/02/2009 - Folha em branco

Atrás de uma mesa, um homem de meia idade debruça-se sobre o universo contido em uma folha de papel. Em sua mão, uma caneta. Em sua cabeça, um amontoado de idéias confusas e difusas, como cobras de medusa.

- Eu quero lhe escrever, mas não consigo. Não importa o que e o porquê, mas tenho que lhe preencher com letras, palavras, frases, parágrafos, texto. Letras tingidas de mim. Pode ser um testamento, uma ação judicial, uma carta de cobrança, uma declaração de amor, um requerimento administrativo, um ofício, uma circular, um bilhete... Pode ser tudo e nada, desde que as letras sejam minhas, ou melhor, saídas de mim. Queria tanto ter sido algum tipo de escritor ? profundo ou superficial - mas frustro-me cada vez que fico diante de você. Chego a ter calafrios. Ò folha em branco, por que me devora desta forma? Quantos romances, contos, crônicas morrem no trajeto entre meu peito e sua superfície desértica. Que deserto é essa sua aridez branca? Não há árvores plantadas em seu território. Não há pedras rolando pelas suas dimensões. Não há pássaros cantando em seus extremos. Só há esse vazio branco e assustador. Eu já experimentei trocar sua cor, mas o efeito avassalador sobre mim continuou o mesmo. E isso é péssimo para a minha carreira. Aliás, que carreira? Trabalho em uma biblioteca e vivo rodeado de livros, de páginas preenchidas. Chega a ser torturador esse cenário. Como eu queria ter um livro com meu nome na capa em uma daquelas estantes. No entanto, quem vai querer ler uma obra repleta de páginas em branco. Já pensou a queda livre que é ler duzentas páginas vazias? Porque a única coisa que consigo produzir são páginas sem letra alguma. Pode ser linha vertical, diagonal, horizontal, hexagonal... pode ser verso... pode ser prosa... pode ser poesia concreta, cúbica, moderna... eu não consigo escrever o que quero, o que sinto, o que vivo. E tudo por culpa sua...

O homem se deita sobre a mesa, como que no auge de sua depressão. Se existe alguma depressão pós-escrita, a dele, sem dúvida era a oposta. Depressão pré-escrita.

- E essa maldição que acometeu sobre mim não é algo novo. Já faz anos que eu tento escrever alguma coisa sem sucesso. O esforço é sempre em vão. Aliás, é um vão solitário e frio. Tive que desistir de cursos de escrita e literatura por conta deste bloqueio. Abandonei uma faculdade de letras já nas primeiras semanas. Por vergonha. Já fui até em psicólogo, mas ele não era escritor para me entender. E os outros escritores também não me entendem porque eu não sou um deles. Afinal, não existe escritor sem escrita. E abstração por abstração, posso dizer que sou astronauta, mergulhador, cirurgião plástico. Astronauta sem espaço. Mergulhador sem mar. Cirurgião plástico sem rosto. Na verdade, sou só um bibliotecário. Devia me contentar em já estar rodeado de livros. Mas eu queria mais. Talvez se eu fosse procurar algum médium. Talvez o bloqueio esteja em vidas passadas. Talvez tudo não passe de um carma. Já experimentei tomar banho de sal grosso, acender vela e incenso, invocar o espírito de algum escritor, mentalizar os sentimentos no papel, mas nunca consegui completar meia linha. Só faço rabiscos. Desenho cachorros, porcos, casas. Mas eu não quero ser desenhista, quero ser escritor. Jorge Amado, Machado de Assis, José de Abreu. Ah! Como eu queria ser um deles. Daria minha vida se fosse preciso. Se o demônio batesse a minha porta, sem dúvida, faria um pacto com ele. Mas nem esse nunca me procurou. Talvez me fazer escritor seja demais até mesmo para o rei dos infernos. E minha vida não passa de um inferno.

O homem se levanta, fica em pé na cadeira, parece querer inverter a ordem das coisas.

- Já tentei lhe olhar de outro ângulo, folha, mas não consegui. Há uma técnica de escrever os sonhos. Mas há tempos não sonho nada. O meu único sonho é conseguir lhe encher de palavras bonitas, mas fracasso a cada tentativa. E então, perco-me em pesadelos. A cada dia, fico mais pesado. Mais pressionado. Mais decepcionado. E a cada dia existe menos tempo para eu conseguir ter uma carreira de escritor. Eu queria tanto sentir as palavras rompendo as minhas mãos, manchando o papel. Mas isso parece que nunca vai acontecer. Nem assim, em contato direto com você, ò folha insolente, tampouco em uma máquina de escrever ou computador. É duro admitir, mas parece não haver química entre nós dois. O que você tem contra mim? Gosta de me fazer de bobo, não é? Se insinua toda, me provoca, me faz ter devaneios e depois me dá um fora com cara de quem nunca me viu. Ora, ora, você é detestável. Já era para eu ter lhe deixado há tempos, mas algo não permite isso. É como se minha sina fosse correr atrás de você, nesse amor platônico. Por falar em amor, os últimos que tive não consegui guardar em você. Independentemente do sentimento que trago comigo, se amor, raiva, paixão, ódio, desprezo... não consigo colocá-lo em você. E por sua culpa não posso freqüentar saraus, encontros literários, academia de letras. Há um limite entre a minha realidade e a realidade dos livros. Eu posso pegá-los, folheá-los, beijá-los, mas não consigo escrevê-los. Se eu não consigo preencher sequer uma folha, o que dirá 100, 200, 300...

Ele eleva a folha, tenta enxergar através dela, roça-a em seu rosto.

- Ah! Como eu lhe desejo, como eu lhe quero, como eu lhe amo. Queria possuí-la com palavras, com galanteios, com provas de um amor impossível. O que há por trás de você? O que esconde? Por que quer me manter distante? Será que não mereço casar minha pele com sua celulose? Quantas exclamações, pontos, vírgulas, interrogações você me negou nesses anos todos... Ah! Nossa história poderia começar com um era uma vez e podíamos ter tantos finais felizes. Mas você insiste que nossa vida tem que passar em branco. E se eu lhe rasgar? E se eu lhe amassar? E se eu lhe jogar ao vento? Você prefere morrer sem conteúdo a se entregar a minha literatura. E se eu lhe estuprasse literalmente falando, o que seria o fruto dessa relação? Será que você abortaria a minha obra? Será que você seria capaz de tirar deste teu ventre o filho que mais desejei na vida? Às vezes acredito que você é mesmo capaz de matar, passional ou friamente. Afinal, seria mais uma morte para quem já matou tantos romances que acabaram desistindo de mim e indo habitar a cabeça de outros escritores. É difícil ver você se oferecendo, se dando, se relacionando com outros escritores. Aqueles filhos que teve com outros seriam meus. Meus! Meus, sua traidora, adúltera. Se você permitisse, eles seriam meus. Mas você me quer distante. E não há nada pior para o ser amante do que a distância.

O homem se cala, porém não rasga a folha, não a amassa, não a atira ao vento como ameaçou. Ele a ama demais para isso. E, como que a querendo proteger, curva-se sobre ela de corpo inteiro. Queria esconder o choro. Quem sabe assim, aos menos as lágrimas daquele escritor sem escrita romperiam essa dimensão que os separa, e habitasse aquela superfície tão branca quão macia, pela primeira vez.


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