20/04/2008 - Faísca
Liberato e o maquinista do trem se olhavam com olhos de faroeste. Entreolhavam-se mirando, um ao outro, com as mãos nos gatilhos. Ali, naquele pedaço de chão fincado entre a vida, propriamente dita, e o sonho, num tempo não muito distante deste, construía-se um duelo que ficaria na história. Estamos no interior de São Paulo, nos primeiros anos da década de 1950. Não foi preciso bater com uma luva no rosto alheio, tampouco assinar algum documento com sangue. O duelo se fazia nos olhos. Nos olhos negros do maquinista que se misturavam a escuridão da fumaça de seu trem. Nos olhos verdes de Liberato que sugavam para si todo o verde, todo o mato, toda a paisagem ao seu redor.
No lombo de uma égua que vestia uma pelagem entre o marrom e o vermelho, Liberato Barbosa, que veio negociar algumas cabeças de gado, resolveu beber uma amarelinha em um bar perto da estação de Martim Francisco. Esse vilarejo ficava, mais ou menos, há três, quatro quilômetros de sua propriedade, o sítio Boa Vista. Depois de algumas cachaças, o maquinista fanfarrão dizia que ultrapassava os cem quilômetros por hora com o seu trem, que ninguém era páreo para ele, que ele era o homem mais rápido daquelas redondezas, que ali só tinha caipira comedor de poeira com seus cavalos.
Como não era de levar desaforo para cassa, o filho de seu Zé Barbosa disse que quem comia poeira de sua égua era aquele trem metido a besta. O maquinista parou, virou o resto de um copo e retrucou dizendo que aquele matuto não sabia com quem estava falando. O sitiante esmurra o balcão e diz que quem não sabia com quem falava era aquele "trenzeiro". O clima foi ficando cada vez mais tenso. Os conhecidos de Liberato, que freqüentava Martim Francisco desde criança, começaram a se preparar para a briga. Embora o maquinista andasse com um revolver na cinta, a fim de proteger a carga, e o dono de Faísca já passasse a mão no chicote, a briga não aconteceu ali no bar. Embora não quebraram garrafas ou cadeiras, não se engane que aqueles dois voltaram para casa sem chegarem as vias de fato.
O bar se esvaziou. Ao lado de Liberato e do maquinista, uma multidão de pequenos agricultores, peões, borracheiros, ferreiros, pedreiros, curiosos, fofoqueiros ganhou as ruas e a companhia de crianças, moleques e até, donas de casa. Todos queriam ver o resultado daquela peleja. E eles foram para a Estação, onde uma locomotiva negra descansava ao lado de 25 vagões vazios. Havia descarregado toneladas de brita e fazia o caminho de volta para buscar mais. Junto da multidão, o maquinista que vinha com a roupa toda sua de carvão e Liberato, que vinha com botas tingidas pela terra vermelha.
O maquinista entra na cabine do trem e começa a rir e a zombar de seu desafiante. Afinal, dentro daquela couraça ele se sentia imbatível. Se preparem para ver o homem mais rápido dessas bandas. Liberato é aconselhado por alguns amigos a desistir. Mas ele insiste e com um assovio mais forte chama Faísca. A égua surge no meio dos olhos apreensivos e ele, numa virada de corpo, enlaça suas pernas na barriga do animal. Montado, parece ainda mais valente.
O maquinista tinha um chapéu preto, de uma espécie de camurça. Libertato vinha com um chapéu de palha, com as abas dobradas. Era o duelo entre o homem e a máquina, entre o sangue e o carvão, entre a o relincho e o apito, entre a tradição e a modernidade. Ganharia quem chegasse primeiro no pontilhão do sítio Boa Vista, há quase quatro quilômetros dali. Tudo favorecia ao maquinista. O trem estava leve, pronto para receber toda força da locomotiva; a distância era um tanto longa e a maior parte do caminho era composto por subida; enquanto um pegaria trilhos e caminho aberto, o outro iria por uma estrada de terra.
Não havia dinheiro ou qualquer outra aposta em jogo, apenas a honra daqueles dois sujeitos. O maquinista, de barba cerrada, valia-se da força bruta de seu trem. Liberato, de bigode, acreditava na agilidade de sua égua, que deixava muito egraçadinho para trás. A pacata Martim Francisco pulsava acelerada. A corrida iria começar e não faltava quem desse palpite. No bolão de apostas, o maquinista ganhava de sobra. Mas havia quem acreditasse em Liberato.
Rompendo o silêncio do campo, o trem grita a toda altura. O maquinista tinha um riso de ironia por entre os lábios. Liberato, montado a pelo, parece conversar com a égua. Ele havia jogado a cela no chão, queria deixar o animal mais a vontade para correr. As rodas já giram em falso sobre os trilhos, loucas de vontade de se desembestar pelo horizonte afora. Os olhos da égua e do cavaleiro se tornam um só na busca pelo destino final. O limpa-trilho e o focinho de Faísca ficam lado a lado. A multidão se agita. Um senhor de cabelos brancos e camisa vermelha, vindo de não sei onde, empunha uma espingarda de dois canos e, diante da angústia alheia, dá um tiro ao alto.
O trem grita em forma de apito, a fim de desestabilizar o adversário, e parte lambendo os trilhos. Sob um relincho, Faísca revida, cola no chão e parte com a crina ao vento. Havia quem ficava em Martim, quem corresse atrás daqueles dois e quem já havia partido minutos antes para ficar na linha de chegada atestando a vitória. Nos primeiros metros, Faísca leva vantagem. É mais ágil. Mas isso já era de se esperar. O problema maior seria segurar o maquinista quando o trem embalasse.
Por um instante, os caminhos se dividem. No entanto, o barulho do trem parece uma assombração solta no pasto. Liberato segura Faísca no braço e sente a velocidade roçar o seu rosto. O cavaleiro não usa espora ou qualquer outra violência com a égua, só uma pegada firme e alguns assobios. O trem chega a patinar colocando força e mais força em sua corrida num desvario alucinado. O som ritmado do atrito das rodas nos trilhos faz o maquinista salivar de desejo.
Faísca galopa com tamanha velocidade que faz arbustos de pequeno porte tombarem e punhados e mais punhados da poeira que estava adormecida no chão se levantarem. Mesmo separados por uma pequena mata, o trem vem ofegante vinha ao lado, pegando pareia. Naquele momento, faísca não era só o nome da égua, mas as labaredas que saiam dos trilhos.
O caminho era longo, a chegada incerta e somente à vontade de vitória era evidente. O suor de Faísca se misturava ao suor de Liberato. Juntos, eles eram um só cavalo, um só movimento, um só orgulho. Perto dali, o maquinista alimentava a fornalha e ficava com as ventas vermelhas de febre. Força máxima no trem que já despontava na frente. Faísca crava os cascos na terra batida, riscando o areião.
A chegada se aproximava, estava difícil para Liberato. A tendência do trem era só correr mais e mais. De repente, começa um vento. Na verdade, um vendaval. Embora estivessem indo na mesma direção, o vento empurrava Faísca e batia contra o trem, que começava a desacelerar. Era como se uma mão segurasse aquela cobra de ferro. O vento assobiava tanto que deixava o barulho surdo, enlouquecido, transtornado. Enquanto isso, faísca voava baixo, indo buscar forças no fundo do peito, que ao contrário do adversário, batia um coração. O trem ostentando o limite máximo do fulgor de seu brio, geme e fica um pouco para trás. Fica para trás também a arrogância do maquinista, que não se conforma com o que estava acontecendo. Por mais que colocasse força, o trem não respondia. Nos braços do vento, a égua deslizava.
Liberato deixa a estrada e corta os domínios de seu sítio. Falta pouco. A estrada torta já vai insinuando o pontilhão. O trem vai apontando na reta. Em uma espécie de mágica, Faísca cruza soberana a linha do pontilhão e Liberato joga o chapéu ao alto, marcando a vitória. Meia dúzia de conhecidos, que vieram de Martim, aplaudem ainda não acreditando. Antes de o chapéu de palha cair no chão, no fundo do valo por onde passa o trilho, o trem passa trazendo o olhar de raiva, de desgosto e de incompreensão do maquinista. A ventania vai embora e o maquinista segue, sem coragem para parar.
Faísca havia deixado marcas de suas ferraduras não só na terra "pisada" do estradão, mas também na alma do maquinista. O trem ainda escorria seus vagões por debaixo da ponte quando o maquinista coloca a cabeça para fora para olhar para trás, ainda descrente do acontecido. O que ele vê é a escultura feita a partir de um assobio de Liberato. Contra o sol poente, Faísca empina e fica em pé, com o cavaleiro em seu lombo, com as mãos ao alto. Como Liberato não caía dali, já que estava sem cela? Esse era mais um dos mistérios que rondavam Liberato. Um mistério, que dessa vez, levou o maquinista para os lados do Norte. Dizem qeu ele nunca mais tendo coragem de voltar para aquelas bandas e até hoje, em dias de vento forte, vê vultos de um cavalo o perseguindo.
Observação do autor: Esse é mais um dos causos de Libertato Barbosa, o homem que duelou com lobisomem, que viu saci-pererê, que escondeu de boitatá, que fugiu de mula-sem-cabeça, que viu a mãe-de-ouro e outras tantas lendas.
Comentários
Nenhum comentário.
Escreva um comentário
Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.