25/01/2009 - Espelhitude
Em pé, uma mulher, de lingerie, olha seu reflexo em um imenso espelho vertical. Ela se aproxima e se afasta, fica na ponta dos pés, busca um ângulo frontal, lateral, diagonal. Ela chega a se contorcer toda para olhar sua imagem de costas. Se pudesse, virar-se-ia pelo avesso. Subindo e descendo olhares, ela vai se perguntando:
- Será que ele vai gostar de mim? Dizem que uma mulher precisa se arrumar para si mesma e não para os outros, mas eu não agüento mais esse rosto, esse corpo, esse si mesma. Quando chegasse certa idade, poderíamos trocar de corpo feito cigarra, feito cobra. Deixar esqueleto e pele para trás e, em feitio de mágica, ser uma nova mulher. Eu não sei cantar como as cigarras, mas ultimamente tenho feito muito barulho. Eu não sei serpentear como as cobras, mas tenho veneno de sobra. Quer experimentar um pouco?
Ela passa o dedo na boca, e mancha o espelho ao tocá-lo. Faz um ar de riso, mas volta a espremer as sobrancelhas, tentando extrair uma visão mais nítida.
- Eu preciso de algo mais radical do que trocar de pele e esqueleto. Quero uma metamorfose geral. Raul Seixas que me perdoe, mas eu quero ser uma metamorfose ambulante, como aquela lagarta, nojenta e verde, que se transforma em uma linda borboleta e sobe, de asas coloridas, para o terceiro céu. Pena que ninguém ainda descobriu o segredo das borboletas. Eu, nos últimos tempos, tenho andado tão lagarta. Não tenho ânimo para mais nada, só sei rastejar por aí. Rastejo por um amor, rastejo por um salário, rastejo por um pouco de atenção, rastejo por um pouco de estética.
De repente, as luzes se apagam e quando acendem, a mulher se pega deitada de bruços, rastejando como uma lagarta. Ela se contorce, se arrasta por aquele chão. Ela se debate, se contrai na tentativa de virar borboleta, mas antes de criar um casulo, cai em si e se levanta, toda ligeira, como que com nojo de si própria. Olha para o espelho, envergonhada, e continua sua prosa.
- Por que você está me olhando deste jeito? Eu sei que preciso mudar mais, ousar mais, amar mais e mais a cada vez que me olho para essa sua lente maldita. Quem sabe se eu cortar o cabelo? Quem sabe se eu colocar um aplique e alongar o cabelo? Quem sabe se eu alisar o cabelo? Quem sabe se eu cachear o cabelo? Quem sabe se eu mudar a cor do cabelo? Preto? Castanho? Amarelo? Vermelho? Azul? Verde? Rosa? Quem sabe se eu mudar meus brincos, meu batom, meus pós colorantes e descolorantes. E se eu dobrar a minha série de exercícios na academia? Eu poderia fazer isso se não tivesse desistido da academia por me comparar com as mulheres saradas que vivem arrancando assovios daqueles malhados sem cérebro. Eu sei que só assoviam para mim por pena ou brincadeira. Podia mudar um pouco aqui, levantar ali, diminuir aí... Quem sabe se seu fizer uma cirurgia plástica? Quem sabe uma lipoaspiração? Silicone ou botox? Quem sabe se eu correr para uma clínica de estética e fizer sessões e mais sessões de drenagem linfática, massagem turbinada, massagem modeladora, bambuterapia??? Será que meu corpo agüenta? Tem que agüentar.
Ela pega e começa a pular, a correr em torno do espelho, a fazer exercícios loucos. Imagina estar em uma academia. Levanta a perna, os braços, o bumbum. Faz abdominal, flexão, polichinelo. No entanto, mais uma vez ela cai em si e, arrependida, volta ao diálogo com o espelho.
- Tendinite. Reumatismo. Bico de papagaio. Não sei o que é, mas começou uma dor aqui e ali também. Deve ser praga sua. Mas não se dê por vitorioso, eu vou cuidar disso rapidinho no ortopedista. Pensando bem, é tanto esforço, será que vale a pena? Se ele me achar bonita, com certeza, vale a pena. Porém, para que tudo dê certo, preciso iniciar uma dieta urgente. Será que apelo para aquelas revistas especializadas das bancas, para os chazinhos da minha avó ou para um nutricionista. Ai meu Deus, adeus chocolate, sorvete, pipoca... Eu não quero uma vida light, muito menos diet! E se eu entrasse na primeira drogaria que encontrasse e comprasse um coquetel de remédios que me fizessem emagrecer, com vitalidade e energia. Mas e as contra-indicações? E se eu ficar pior do que já estou? Impossível, não posso ficar pior do que isso. Além disso, o que eu faço com essas espinhas, esses cravos, essas protuberâncias que insistem em manchar a minha pele? Eu preciso de uma limpeza de pele profunda urgente! Também vou comprar aquelas máscaras de rejuvenescimento. Já estou até me vendo três, cinco, dez, quinze anos mais nova. Você também vê, espelho?
Ela para diante do espelho, assustada com sua reação. Parece querer dizer alguma coisa, mas fica entalada... Examina o espelho de cima a baixo. Se cobre com as mãos. Chega a correr dos olhos do espelho. Depois despeja a falar...
- Eu devo estar desesperada mesmo, onde já se viu eu me despir assim diante de um, de um, de um... espelho! E pior, conversar com ele? E se ele, por algum milagre, ganha vida e sai por ai. E se ele conversar em espelhes com outros espelhos. Seria o meu fim. O que será que há por detrás dessa lâmina? Será que existe vida do outro lado? Esse silêncio todo me intriga. Com certeza deve haver alguém me espionando. Nem que for alguma criatura microscópica ou invisível. As janelas estão fechadas. As portas estão fechadas. Até o buraco da fechadura está vedado. Estamos eu e você aqui, senhor espelho. Pare de gracinhas. Como ousa falar isso comigo? Você não tem vergonha, não? Deixa de ser abusado. Se você der mais um passo, eu grito. E você será apenas um espelho de penitenciária. Já imaginou, aqueles homens gordos e com a barba por fazer lhe olhando, lhe beijando, lhe querendo? Um fim bem justo para quem sonhou em ser espelho de cinderela. Espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu? Cale a boca, não ouse falar mais nada. Eu não quero escutar sua resposta. Fique mudo. Já bastam os estragos que você faz comigo com sua boca fechada. Celulite? Estrias? Gordura localizada? Acho que vou lhe quebrar. E não tenho medo da sua boca de praga, nem para os sete anos de azar.
Depois de gritar, a mulher soluça e começa a chorar e abraçar o espelho. Ela sussurra em seu ouvido, com lágrimas escorrendo pelo rosto e pela lâmina.
- Perdoe-me, mas você me deixa louca. Olhe essas minhas olheiras. Eu fico ainda mais horrível chorando. Não adianta dizer que estou linda, eu sei que preciso fazer algo, estou verde. Preciso tomar sol. Vou à piscina, à praia, à laje. Em algum lugar preciso me entregar ao sol. Mas antes preciso comprar um maio. Maio ou biquíni? E também uma saída de praia e uma bolsa de praia e uma sandália de praia. Se eu lhe fizer uma pergunta, você não fica constrangido? Pois bem... Você, sr. espelho, acha que ele vai gostar das marquinhas de sol? Acho que vou ter de fazer um topless. E se eu for presa? Ah! E não posso me esquecer dos óculos escuros. Os meus estão tão fora de moda. Além de ir disfarçada para a delegacia, em caso de ser presa por topless, eles vão me proteger do sol. Falando nisso, será que eles me protegem mesmo dos raios ultravioleta? Também preciso de protetor solar. Ou seria bronzeador? E agora? Melhor consultar um dermatologista. Talvez seja melhor fazer um bronzeamento artificial. Bronzeamento à jato ou com aqueles sprays de farmácia. É isso, preciso ir ao nutricionista, ao ortopedista, ao esteticista e ao dermatologista. Isso sem falar na manicure, na pedicure, na cabeleireira... E se eu ficar tão linda e ele quiser, de imediato, ter um filho comigo? Preciso correr para o ginecologista.
A mulher coloca as mãos sobre a barriga, imagina-se grávida e parece sonhar. Pela primeira vez, seu semblante é tranqüilo a ponto de um sorriso seu se esparramar completamente pelo rosto. E, como que encantada, começa a falar dançando...
- Já imaginou, espelho, eu carregando um filho dele? Quem é ele? Não, não ouse me fazer essa pergunta. Nãooooo! Eu sei... Ele não existe e se existe, não me quer! Você tinha de colocar tudo a perder. Não adianta mais sonhar. Afinal, eu vou ter filho de quem? Só se for de você, espelho. E se for seu, ele vai ser uma espécie de Narciso. Deus me livre de narcisismo. Eu não quero parir um espelho e ter que ficar olhando para ele e me vendo nele dia e noite. Além disso, minha barriga vai estourar. Vou ficar vinte quilos ainda mais gorda. Meu corpo vai rachar de estrias. Meus peitos vão cair. Minha pele via ficar manchada. Meu rosto vai inchar. Como você ousa me engravidar, seu maldito?
Nesse momento, com a fúria do mundo em suas mãos, a mulher pega o secador de cabelos e quebra o espelho em mil pedaços, como que quebrando a si própria. Sem reflexo, ela chora e cai, ferindo-se nos cacos de seu reflexo esparramados pelo chão.
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