04/01/2009 - Entre o céu e a guerra
O cenário é desértico e chuvoso, com direito a relâmpagos e trovoadas ao fundo.
O relógio, que não existe ali, avança para além das cinco horas da tarde.
Por entre a lama que borra sua bota e arames farpados capazes de rasgar até a alma, ou o que ainda resta dela, um homem caminha empunhando um rifle e o peso de tantas mortes nas costas. Ele vem fardado, rasgado, triturado em sonhos e medos.
- Ó deus, ó deus, por que me abandonou? Por que me deixou matar tantas pessoas, por que me fez calar tantos corações? Será que eu sou uma espécie de justiceiro? Será que sou seu anjo ou o demônio que fugiu pelas portas do fundo do céu. Ah deus, por que tinha de ser eu? Agora, caminho por esses campos com o gosto da morte entre meus dentes podres e minha língua que esqueceu como se pronuncia o amor. E eu me alimento da morte alheia como um corvo agourento. Ah! Deus, agora, por onde quer que vá, eu vou levar esse gosto de pecado comigo. E isso é um vício, é um viço que gruda e não sai da gente. Pecar, pecar, pecar. Eu não quero a salvação, a redenção, o perdão, eu quero o pecado. Ah! Deus, ò deus, dá-me o pecado. Eu quero pecar.
O fuzileiro cai de joelhos ao chão, em meio à lama. Parece ter seu corpo lambuzado pelo pecado original e genérico.
- Ah deus, se tu fizeste mesmo o homem do barro, essa lama deve ser seu gozo. E é por meio dessa fantasia, dessa epopéia, desse drama chamado história da humanidade que eu vou me embrenhar. Quero beber dessa lama. Quero me lambuzar nessa lama. Quero remodelar a sua imagem e semelhança nesse pecado que é a criação do universo. Ó deus, me sopra seu sopro divino, sopra meus calos, sopra minhas feridas, sopra minhas agruras. Sopra minhas cicatrizes, sopra meu suor, sopra todo meu ser. Sopra a minha angústia, sopra a minha agonia, sopra a minha tristeza de ser guerra. Sopra as minhas trincheiras, sopra a minha pólvora, sopra os guerreiros que me habitam. Sopra a minha vida em guerra e a minha morte em vida. Sopra, sopra, sopra...
O homem abre os braços, ajoelhado na lama, sob uma chuva que escorre por seu rosto. E desabafa.
- Eu sou quem deus, quem? Sou seu filho? Duvido que tenha um filho que faz da morte alheia o próprio destino. Fiat Lux? Não! Fiat Mortis!!!! Eu troquei a mulher que eu amava por esse fuzil, pelo amor à pátria, pela paz no mundo. E ao primeiro tiro, a mulher não me esperou, a pátria esqueceu meu nome e a paz se tornou um sonho distante. Eu tenho sede, eu tenho fome, eu tenho ódio de mim. Eu jamais serei um herói, carregado nos ombros, aclamado, lembrado nas escolas. Eu serei sempre a guerra. A guerra que é temida aos quatro ventos. Eu sou um dos seus cavaleiros meu deus, um dos que cavalgam no apocalipse, eu sou a guerra, o guerrear, o guerreador. Não tenho filhos, porque a guerra é estéril. Não tenho família, porque a guerra é órfã. Não tenho casa, porque a guerra é o deserto que há dentro e fora de cada um de nós. Olha bem para mim, deus, olha o que você criou. Será que tem orgulho de um filho assim? Será que essa chuva é chuva ou lágrimas de descontentamento ou cuspe, rejeitando a cria. Eu sou sua cria, ò deus. Por que, por que me abandonou?
O homem chora, soluça, afoga em seu catarro. Não se sabe mais o que é lama, suor e sangue. Ao seu lado, outros corpos, outros sonhos, outros pesadelos. Passa a mão pela cabeça, e coberto de barro, mira a arma para o céu e dispara.
- Eu quero matar-lhe deus. Quero derrubar você deste céu. Quero que venha cair nesta lama comigo. Vamos beber dessa tragédia, vamos beber do sangue dos que caíram, vamos beber dessa podridão. Eu sou a guerra. E a guerra não tem passado, não tem presente, não tem futuro. A guerra é praga que me corrói e me move e me faz lhe encontrar. Eu sou o pecador, aquele que você pisa e que, mesmo assim, lambe seus pés. Eu sou o mal. E o pior de tudo é que lá no fundo eu me arrependo de tudo isso. E é isso que lhe mantém vivo em mim. E é isso que não me desliga de ti. Eu ainda tenho esperança. E isso é o pior de tudo. Não há nada pior do que ter esperança. Queria matar-lhe deus, ao menos, matar-lhe dentro de mim para que eu pudesse viver em paz. Em paz com minha guerra. Mas eu não consigo. Eu não consigo. Não consigo.
O homem levanta e brada três vezes.
- Quer pior castigo do que o de viver entre o céu e a guerra?
Depois dos gritos, o soldado se invade de silêncio. Fica longos segundos em silêncio e depois joga o rifle ao chão, abre os braços ao céu e, de costas, cai na lama. Dali, chora, soluça e faz da lama o seu colo.
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