22/02/2009 - Degraus
Em um palco imaginário, um homem se depara com uma longa escada e um longo dilema, escalá-la ou deixá-la.
- Vida, ó vida de escadas e escadarias, onde vão dar esses seus degraus? Será que vão me levar ao céu? Direto para o paraíso de anjos e harpas e nuvens brancas e macias de se cochilar? E quando lá, se São Pedro não me der à chave eu pulo o muro. Ou será que você vai dar na lua? A lua de crateras, de São Jorge, dos astronautas norte-americanos. Só não pode é dar no céu escuro. Porque eu tenho medo. Não conte a ninguém, por favor, mas eu tenho medo do escuro. Por isso é que eu lhe admiro tanto. Graças aos seus degraus, eu saio dos bueiros, dos esgotos, dos vales de mim e ganho à luz. E por que não subir em uma estrela e agarrar suas pontas como quem agarra cabelos e tornozelos da pessoa amada? Eu quero que me leve a uma estrela, a milhares de anos-luz daqui. Em que constelação vai me levar? Vai me levar para Três Marias, Órion, Escorpião? E se ele me envenenar e eu cair lá de cima? Quem é que vai me segurar? Será que vai dar em algum planeta daqueles que se decoram para as provas de escola ou daqueles que fogem da vista dos cientistas? Será que vou falar com extraterrestres? Alô, alô, terra chamando marte. Para onde você vai me levar, escada.
Ele coloca suas mãos na escada, ameaça subir, mas desiste.
- Mas e se do jeito que o mundo virou de ponta cabeça eu subir, subir, subir e for parar no inferno. Queimar no fogo eterno. E se o demônio me receber pessoalmente, pronunciando meu nome e meus feitos, e me dizer com um sorriso avermelhado: seja bem vindo. O meu sonho estará findo? Ai, quantos pecados. Ai, quantos medos. Ai, quantos desassossegos diante desta escada que pode dar em tudo e dar em nada. E se eu subir e me perder de mim, dos meus dias, do meu jardim? Devia haver um roteiro, um guia, um cupim falante para me dizer para onde vai. Será que alguém que já enfrentou esses degraus, voltou? Se quem vai não volta eu não vou. Mas não vou mesmo. Mas e a curiosidade de saber o que há do outro lado? Esses degraus mexem com meus hormônios. Vem uma sede de escalá-los, de abraçá-los, de calá-los com meus pés e mãos. É como se a escada fosse uma montanha. E montanhas me atraem. Sou alpinista de meus dias.
Ele roça suas mãos pela circunferência da escada e gira. Ela é o sol, ele uma espécie de planeta dependente.
- E agora, subir ou não subir. Aos três anos, brincando no parque, cai da escada do escorrega. Minha boca ficou cheia de areia. Aos cinco anos, usei uma escada para pegar biscoito no alto do armário, pisei em falso, despenquei e quebrei o braço direito. Perdi a fome. Aos nove, recostei a escada no pé de amora. Mais uma queda. Fiquei com o rosto pintado de roxo. Aos 10 anos, em uma noite de lua cheia, coloquei uma escada no pé direito da minha casa e passei a noite no telhado. Aos 12, subi numa escada para olhar o vestuário feminino. Vi pela primeira vez uma mulher nua. Aos 13, usei uma escada para fugir da escola. Aos 15, foi por meio de uma escada que entrei no quarto da minha namorada sem que ninguém visse. Aos 16, subi as escadarias do Maracanã. Aos 18, subi em uma escada do corpo de bombeiros. Com a mesma idade, subi as escadarias do Bonfim. E agora, aos 19, não sei onde minha vida de escadarias vai dar. Será que vai me levar aos 20 anos. Será que arrisco? São degraus infinitos, incontáveis. Serão reais ou só existem dentro da minha cabeça? Esses degraus me atormentam, me agonizam, me enfurecem, mas, ao mesmo tempo, me acalmam, me dopam, me trazem o sono perdido das noites em que varei pensando como iria escalar os degraus da vida.
Ele senta aos seus pés e recosta sua cabeça no último degrau.
- Enquanto muitos contam carneirinhos ao dormir, eu conto degraus. Eles me enfeitiçam, me inebriam, me viciam. Será que essa escada vai dar em algum ginásio, em algum mundo perdido, em algum novo horizonte. Será que vou encontrar duendes ou outras criaturas dos livros que usava como degraus quando criança? Onde é o pé e a cabeça desta escada? Onde estão suas mãos, seus olhos, sua boca? Quero sentir seus braços, quero olhar dentro de seus olhos e, quiçá, beijá-la nas alturas. E se você não gostar e me fizer rolar seus degraus abaixo? Você é traiçoeira, perigosa, boca de praga. Se eu passar por baixo de seus degraus, ai meus Deus, o azar dos que já lhe subiram seguirá comigo. E quanto esforço será preciso para chegar ao seu topo? Será que me ajuda? Será que me carrega? Será que é rolante? E se for um pé de feijão disfarçado e nos seus cabelos morar o gigante dos ovos de ouro? E se lhe tirarem depois que eu chegar lá no alto, será que terei de morar no castelo? E se for uma armadilha? Quantos fantasmas lhe habitam?
Ele começa a subir. Sobe três degraus e pára. Olha aos lados, olha para baixo e para cima. E grita seu avesso.
- São tantos degraus. Cada degrau é um ciclo, uma fase, um tempo. Cada degrau, esperança ou tormento? E se você partir? E se você quebrar? E se eu escorregar? E se você não suportar o meu peso. São quilos e mais quilos de sonhos e pesadelos formando o meu corpo. É preciso ter cuidado, é preciso ter zelo. Escada, enfrentá-la ou abandoná-la, abandonando em seus degraus meus sonhos e desejos? Eu, escadador da fantasia, hei de tombar, mas só depois de conhecer o gosto de seu último degrau.
Observação do autor: Na segunda, terça e quarta-feira de carnaval este espaço ganha poesias carnavalescas. Afinal, é momento de amar, relaxar, brincar com as palavras...
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