Daniel Campos

Texto do dia

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12/04/2009 - Coelhas e onças andam lado a lado

Hoje acordei procurando rastros de coelho pela casa. Busquei pelo chão, pelas paredes, pelos lençóis... No quarto, na sala, na cozinha, na sacada, no banheiro... Mas, pelo visto, coelhos não gostam muito de apartamento. Talvez sejam claustrofóbicos. Então, desci aos jardins, às praças, aos canteiros caçando pistas dos possíveis seres pulantes. Queria presentear minha amada com um deles. Afinal, é Páscoa. Quando achei uma toca, no meio do mato, vibrei. Mas era morada de uma coruja mal-encarada.

Entre um jardim e outro, encontrei uma menina, de pantufa, boca lambuzada de chocolate e três anos de idade. Devia ter acabado de acordar e descido também à procura dos famigerados coelhos. Ela cantava uma música engraçadinha para um sujeito abobalhado, que devia ser pai dela. Ela dava pulinhos, se derretia toda em caras e bocas, encolhia os bracinhos, erguia e baixava a voz, com graves e agudos. Havia aprendido a cantiga na escola:

"De olhos vermelhos
De olhos vermelhos
De pêlo branquinho
Orelhas bem grandes
Eu sou coelhinho
Sou muito assustado, porém sou guloso
Por uma cenoura, já fico manhoso
Eu pulo prá frente, eu salto prá trás
Dou mil cambalhotas, sou forte demais
Comi a cenoura, com casca e tudo
Tão grande ela era
Fiquei barrigudo"

Ela tinha o rosto todo pintado, com o nariz borrado de vermelho e alguns riscos pretos nas bochechas, imitando o bigode dos coelhos. Também tinha duas orelhas longas, branquinhas, como que de algodão recém-chegado do campo. E suas pantufas também eram, na verdade, dois coelhinhos risonhos. Era encantadora aquela menina-coelha. Sem me fazer de rogado, cheguei perto e exclamei:

- Nossa, que coelhinha mais fofa que eu encontrei?

Ela se esqueceu que era coelha e respondeu em feito de oncinha.

- Fofa é gente gorda. E eu num é gorda. É charmosa igual mamãe. E eu num tá perdida não para ocê encontrar eu.

O pai da menina ficou todo sem graça diante do constrangimento, mas eu sorri, desfazendo qualquer possibilidade de mal estar. Quem mandou chamar a menina de fofa? Era melhor tentar corrigir antes que perdesse o único coelho que consegui encontrar.

- Você é uma coelhinha muito linda, qual é seu nome?

- Ocê é sem-vergonha e besto, né moço? Não tá vendo que eu num é coelho, eu é menina. E ocê num é meu pai pra saber o meu nome. Eu tem família, sabia? Meu pai é brabo demais, ele bate nocê. Bate nele pai, bate...

Diante dos braços cruzados do pai, ela mesma se incumbiu de chutar a minha canela. O pai ficou todo vermelho de vergonha. Antes que a coisa piorasse, resolvi não render mais assunto e seguir estrada tentando encontrar outros coelhos mais mansos. Aquela coelhinha era muito invocada para ser envolta com um laço e ser o presente de alguém. Ainda mais um presente romântico.

Anda daqui, anda acolá, anda para lá e pra cá e nada. O máximo que encontrei foi um coelho de pelúcia na mão de outra criança que, depois do acontecido com a outra menininha, decidi deixar de lado. Também achei um coelho de chocolate na vitrine de uma padaria, mas ele não conversava, não pulava, não cantava. Sem qualquer sinal dos primos do Pernalonga, o jeito era voltar de mãos vazias.

Ao chegar ao quarto, sobre os lençóis, a mulher amada com um lingerie de coelha e a cama forrada com lascas de chocolate. Nos lábios, o beijo adormecido do chocolate derretido. Quando ouviu meus passos, começou a cantar: "De olhos vermelhos, de pêlo branquinho"...

Pela segunda vez em menos de sessenta minutos iria presenciar uma coelha se transformar em onça bem diante dos meus olhos. Definitivamente, coelhas e onças andam lado a lado, como corpo e alma.


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