Daniel Campos

Texto do dia

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03/05/2009 - Cinco anos de casa nova

O relógio avança na ânsia dos ponteiros. Estou atrasado e, mais uma vez, com a pressa do mundo. Impossível chegar ao meu compromisso, uma entrevista, no tempo necessário. Poderia perder o entrevistado, a matéria e, sobretudo, o emprego. Preocupações mundanas necessárias para quem está no mundo, mesmo que de passagem. Como não dava para ir de avião, o jeito era pegar um táxi e torcer para que ninguém se importasse com alguns minutos a mais. No entanto, não tinha tempo para ligar para um taxista conhecido nem para uma dessas redes, tampouco esperar um desses carros chegarem sabe-se de lá onde. O melhor era descer e entrar no primeiro táxi que encontrasse.

Estou com sorte, mal desci e já vem um táxi. Táxi, táxi... Porém, ele não pára. Está ocupado. Com o segundo e o terceiro acontece a mesma coisa. O meu atraso se multiplica. A minha angústia também. No entanto, quando menos espero, um táxi, num tom esverdeado, está estacionado e com a porta aberta bem debaixo do meu nariz. Sem perder a oportunidade, entro, bato a porta e digo o destino ao senhor que mantém os olhos à frente. Também digo que se ele fizer o percurso em quinze minutos eu dobro o valor do taxímetro. Se o fizer em dez, triplico. E se cumprir o itinerário em menos que isso, pagaria cinco vezes mais.

Ao contrário de pé de chumbo, tinha pé de algodão. Andava devagar como se falasse a língua de outro tempo. Aquilo foi me enervando, a ponto de tentar descer do táxi. Mas a porta não abriu. O motorista era um senhor, meio calvo, barba feita, um tanto cheinho. Não dava ouvidos aos meus apelos, aos meus gritos, ao meu desespero. E pior, levava-me por um caminho completamente desconhecido. Era como se eu estivesse em outra cidade, ou melhor, em outro planeta. Minha gastrite nervosa urrava dentro de mim. Era melhor desistir da entrevista e começar a pensar em uma boa desculpa para o chefe.

No entanto, pouco a pouco, a paisagem da janela foi me acalmando, fazendo-me inclusive esquecer a entrevista. Eram casas simples, coloridas, sem muros ou cercas. Havia um gramado sem fim, em vários tons de verde, e inúmeros canteiros com folhagens e flores. Tudo era muito limpo e perfumado. Havia também os bosques, as praças com fontes e muitas borboletas e pássaros. Pessoas caminhavam sorrindo pelas ruas sem pressa. Crianças saiam felizes das escolas. Além do sorriso e da leveza, o que mais diferenciava aqueles homens e mulheres dos da minha cidade é que eles andavam de túnicas brancas, azuis, rosas, com sandálias baixas ou descalços.

O carro para em frente a uma casinha branca com janelas verdes. O taxista desce. Não entendo nada. Ele abre a minha porta, mas não é ali o local da minha entrevista. Estendendo-me à mão, convida-me para descer e conhecer sua casa. Sua nova casa. Não queria, mas era preciso tentar entender tudo aquilo. Quando desci, o homem, que estava de calça social e camisa de mangas curtas também, já estava de túnica. A dele era num tom de bege claro. E o carro desapareceu. E o taxista, para minha surpresa, era meu avô. Meu avô Antônio, taxista que fizera a passagem há cinco anos. Aquilo só podia ser uma espécie de sonho.

Depois de um longo abraço, tão real quão enigmático, com direito a tapas nos ombros, convidou-me novamente para entrar.

- Vô, onde estou, aonde o senhor me trouxe?

- Meu filho, você está em uma colônia espiritual, na qual vivem alguns espíritos desencarnados. Espíritos bons, porque os maus... bem, é melhor não falar dos maus...

- O senhor está querendo dizer-me que estou no plano celestial? Mas aqui tudo é tão parecido com a Terra.

- Pois é, meu filho, cada cidade material da Terra possui um espaço espiritual correspondente. Temos sistemas de defesa, hospitais, escolas, jardins, praças, locais para reuniões... A colônia era uma cidade suspensa no ar, como que construída em cima de uma grande e sólida nuvem.

- O senhor está bem, corado, sem aquelas manchas, curado das feridas...

- Pois é, depois que desencarnei, passei um tempo no hospital. Em seguida, fui para uma colônia de adaptação, onde me acostumei com a idéia de que tinha morrido. Depois fui me inserindo, me integrando em trabalhos comunitários e estudei muito. O seu avô que nunca passou do primário quando vivo, evoluiu muito na aprendizagem.

Que orgulho, meu avô tornou-se um espírito de luz em franca evolução. E ele, todo satisfeito, apresentava-me a alguns de seus amigos também desencarnados, parte de seu núcleo. Desde que me entendo por gente meu avô sempre gostou de me apresentar para seus amigos. Continuava o mesmo. No entanto, falava com segurança em um tom de sabedoria...

- Aqui não há espaço para dinheiro, poder ou status. Aqui o que conta é o grau de evolução alcançado por meio do uso correto do sentimento e da inteligência. Hoje, vejo que a maioria das coisas por qual briguei lá embaixo não valia a pena. Devia ter sido mais duro em algumas situações e mais leve em outras, mas tudo isso é válido como experiência para quando eu descer novamente.

Parecia incrível, mas ele não tinha mais aquele jeito turrão, tampouco aquela falta de paciência de quando encarnado. Era um novo homem. Sabia até fazer café. Passou-me um fresquinho. Segundo ele, além de luz espiritual, os desencarnados, para suportar a missão, faziam algumas refeições. Sua casa era modesta, mas aconchegante, envolta pela luz de sua aura. Todos os espíritos têm uma vibração específica, o que indicam sua identidade e o grau de sua evolução. Embora ainda tivesse um longo caminho a percorrer, seu Antônio tinha conquistado muito.

Depois do café, fomos nos sentar sob um ipê roxo. O clima era mais ameno do que o na Terra, a brisa soprava e derrubava algumas flores de ipê sobre nossas cabeças. Ele me perguntou sobre minha avó e me mostrou algumas árvores e lavouras que tinha ajudado a plantar. Fui ficando leve e por pouco não cochilei ali mesmo.

- A prosa está boa, mas temos que ir.

- O senhor é quem sabe... Cadê o carro?

- Agora ele não é mais preciso.

Meu avô me segurou pelas mãos e me pediu para fechar os olhos. Quando os abri, estava na sala de espera do meu entrevistado, um desses políticos que não vale a pena citar o nome. O importante é que eu estava ali a dois minutos do horário combinado. Como fui parar ali? Tudo não deve ter passado de um sonho. A noite passada foi mal dormida, o trabalho estava demais e os cochilos eram freqüentes. Mas como explicar o gosto de café em minha boca e algumas pétalas de ipê roxo sobre o ombro do meu paletó?

Observação do autor: Há exatos cinco anos, seu Antônio passava para outro plano. Há exatos cinco anos, está de casa nova e, segundo ele mesmo, feliz.


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