17/02/2008 - Causo do lobisomem
Passeando pela televisão na noite de ontem (16/2), encontrei uma pequena rachadura no óbvio que domina a telinha. Ao contrário das novelas globais que se passam sob o sol de Copacabana, a Record estruturou seu enredo em uma ilha com homens lobo, mulheres cobra, homens morcego, mulheres elétricas, homens invisíveis, mulheres invencíveis, isto é, um universo de mutantes. São dezenas de seres humanos geneticamente modificados por uma cientista com pretensões de criar a raça perfeita. Na trama de Caminhos do Coração chamou-me a atenção um dos mutantes mais perigosos da ilha - o lobisomem. No domingo em que o horário deixou de ser de verão, vou contar para vocês uma história que nunca me deixou. Afinal, domingo é dia propício para contar causo.
Em uma pequena cidade dos anos 50, o baile de sábado era o ponto de encontro dos apaixonados. Ali, no piso daquele salão, duas fileiras de banco se entreolhavam. Em uma delas, sentavam-se os homens. Na outra, as mulheres. O cavalheiro mirava a dama que queria em seus braços em uma dança e fazia um pequeno sinal. Um piscar de olhos, um passar de mão pelo rosto ou cabelo, um olhar mais fundo. Do outro lado, a mulher respondia com um breve sorriso ou ignorava tal pedido. Se o sinal fosse correspondido, o cavalheiro levantava e, todo confiante, retirava a dama para dançar. O bom senso pedia esse ritual, posto que a mulher poderia dar uma "tábua" no homem, isto é, recusar-se à dança. A vergonha de o cavalheiro voltar sozinho para as cadeiras era de causar pânico em qualquer um.
Neste sábado, em questão, na fileira dos homens estavam sentados três grandes companheiros: Luis, Antonio e Liberato. Luis era irmão de Liberato, o mais novo da turma. Antonio, por sua vez, era o mais tímido e o mais piadista deles. Os três riscavam o salão com seus passos. Os três construíram naquele espaço uma espécie de competição de dança particular. Três estilos diferentes. Luis, curvava a cintura da dama, que chegava a encostar os cabelos no chão. Quem estava de fora tinha a ilusão de que a mulher se quebraria em duas. Antonio, o mais contido deles, dançava numa suavidade que tirava seus pés do chão. Já Liberato, arrebitava o quadril e corria o salão inteiro com seus passos, com meias piruetas e outras acrobacias improvisadas.
Perto das três horas da manhã, Liberato viu-se sozinho no salão. Luis, intempestivo como sempre, pegara sua caminhonete e foi sabe-se deus para onde. Já Antônio se despediu do amigo quando cruzaram, com seus respectivos pares, numa contra-dança. No outro dia, trabalharia cedo num carreto. Liberato estava tão entretido com o baile que nem se importou em ficar ali sozinho. Afinal, perdera a carona e a companhia. Já que estava tudo perdido mesmo, resolveu partir para outras danças. Mas sua "ânimo" acabou logo, posto que o caminho que levava ao sítio era mal assombrado.
Seriam cinco quilômetros de uma estrada escura. Sua sorte foi ter encontrado, no início do caminho, Zé Pretinho. Filho do meeiro de seu pai, ele vinha de um São João e também voltaria para o sítio a pé. Ao menos, teria companhia e conversa durante a caminhada. Por si só, o caminho era sombrio e assustador. Ainda mais naquela noite em que a lua cheia estava ainda mais provocadora. Os cachorros ficavam loucos com aquela nudez explícita no céu e uivavam sem parar.
Quando os dois amigos chegaram perto da Água Cumprida (uma fazenda onde corria um riacho em meio a pedras) começaram a escutar um barulho estranho parecido com um galope de cavalo. O curioso é que esse animal estalava as ferraduras na casca do asfalto, produzindo um som digno dos filmes de terror. Cruz-credo. Aquilo só era possível na cidade e estavam no meio do mato em uma estrada de terra batida.
A cada passo o ruído ficava mais forte. Liberato olhava para trás e não conseguia ver nada além da escuridão. Para o desespero da dupla, o galope se tornava mais e mais próximo. Os uivos rompiam o céu como trovões. Zé Pretinho rezava meio sem jeito. De um eco distante, o barulho cresceu até ficar ensurdecedor. Aqueles estalos zuniam dentro da cabeça. Em meio a alguns temores localizados, apertaram o passo. Uma angústia pulsava no peito. Um suor frio escorria pela espinha. A lua parecia mais baixa do que de costume. Tinha-se a impressão de que ela iria pousar ali no meio da estrada.
Aquela espécie de galope mordia seus calcanhares. A própria lua parecia uivar como fêmea no cio. Os dois começaram a correr. Zé Pretinho, mais miúdo, saiu em desvantagem naquela corrida. O que era trágico tornou-se engraçado. Zé Pretinho puxava a camisa de Liberato, que escorregava e puxava Zé Pretinho, que embolava uma perna na outra e empurrava Liberato, que rolava... E assim aqueles dois iam desbravando a noite escura.
Tropeços e tombos depois, os dois chegaram ao pé do morro. Do outro lado daquela "montanha" ficava o sítio Boa Vista. O destino estava próximo, mas aquele som era cada vez mais assustador. Respiraram fundo e correram morro acima. Pernas para quem te quero. Uivos e estralos. Combinaram de ficarem mudos para chamar a atenção, mas desgrenharam numa gritaria, num rezadeiro, num esperneio que os tornavam alvos fáceis.
Não dava tempo de chegarem até o sítio de seu Zé Barbosa, pai de Liberato. Então, decidiram entrar no sítio do tio, que ficava no alto do morro. Só que para chegar até a casa precisavam passar por três porteiras. Só havia um agravante: uma tinha mais fama de mal assombrada do que a outra. Ao entrar na estradinha do sítio, além do barulho daquele galope e dos uivos demoníacos, pios e mais pios de coruja. Pios de mau agouro.
A primeira porteira eles pularam sem tomar conhecimento e voltaram à carreira. Na ânsia de pular a segunda, montaram em suas ancas e um pé de vento, vindo do nada, atirou-os na cerca ao lado. Espinharam-se no arame farpado aos berros por socorro. Os uivos os sufocavam. Enroscados no arame, olharam para trás e enxergaram dois olhos vermelhos imersos na escuridão. Sem pensar duas vezes, correram deixando retalhos de roupa na cerca.
O fôlego já havia acabado há muito tempo. Eram movidos ou, melhor, empurrados pelo medo. Passado da última porteira, eles olharam para trás e um cachorro gigante ganhou suas retinas. Dentes grandes. Pelo ouriçado. Olhos vermelhos. Com as pernas bambas, conseguiram entraram na casa de tio Vitorino. Apressado, Zé Pretinho pulou a primeira janela que encontrou. Quando Liberato bateu a porta dos fundos, passando todos os trincos possíveis, o barulho do galope passou feito um rastilho de pólvora. Os treze cachorros daquela casa saíram correndo atrás daquele bicho pelo sítio afora. Latidos e mais latidos.
Tio Vitorino, de espingarda na mão, queria saber o motivo de tanta correria. Zé Pretinho, ofegante, mantinha a boca fechada para não deixar seus pulmões escorregarem garganta afora. Liberato, tremendo feito bambu no vendaval, tentava explicar o acontecido. Dali um tempo, chegou seu Zé Barbosa no lombo de um cavalo. Disse que havia passado um lobisomem lá pelo sítio Boa Vista com a cachorrada de seu irmão Vitorino atrás. Disparou alguns tiros, atiçou seus cães, mas o bicho fugiu.
Liberato esbugalhou os olhos verdes e engasgou com café quente ao saber que o barulho que escutaram durante todo o caminho vinha de um lobisomem. Alimentado pela lua, o lobisomem corria enlouquecido. Na correria, uma orelha batia na outra estralando o som do medo. Naquela noite, quem dançava ao som de valsas, correu ao som do lobo.
Observação do autor: Este causo, verídico, foi vivido por meu avô Liberato. Segundo ele, até hoje o lobisomem bate as orelhas para os lados de seu sítio em noites de lua cheia. Gostou? Este é apenas um dos causos vividos por ele e por Antonio Bueno, meu outro avô.
Comentários
exelente,muitobem escrito.suspense total.
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