Daniel Campos

Texto do dia

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23/05/2009 - Até tu, canário!

Ele sempre se levantava após o som de um canário belga ecoar pela casa. Não saía da cama por nada antes que o tal pássaro cantasse uma ou duas árias. Há anos era assim. De domingo a domingo, a ave cumpria o ritual de forma pontual. Entre as sobras de noite e a declaração do novo dia, surgia a cantoria. Mas naquela quinta-feira o silêncio prevaleceu. Até o preguiçoso curió cantou antes dele. O sol esquentou e seu relógio de penas não despertou. Era praticamente impossível sair da cama sem aquele sinal. Supersticioso como poucos, classificou aquilo como o fim dos tempos.

Queria ver o que aconteceu com o pássaro, mas se levantasse da cama poderia ser o fim. O apocalipse poderia ter varrido tudo lá fora. Um eclipse gigante poderia ter engolido o sol. Mas e se ao contrário de trombetas, o que aconteceu foi um episódio de mão-leve. Algum gatuno poderia ter levado seu passarinho no bico. Também poderia ser algum bruxo atrás de um pássaro para apimentar seu feitiço. Malditos. Era preciso averiguar. Mas cada passo fora da cama, sem a benção do canto matinal, era um agouro a mais. Estava prestes a chamar a sétima cavalaria.

Enrolou-se nos lençóis e foi caminhando e tremendo à procura da ave. Mas e se o bandido ainda estivesse lá? E se estivesse armado? E se fosse realmente o fim do mundo? E se a morte estivesse em tocaia atrás da janela? Porém, seu pássaro ainda poderia estar vivo, precisando de ajuda. Entre o afeto e o medo, caminhou. Pousou as mãos na janela, destrancou o cadeado e abriu suas folhas num gesto súbito, repleto de desespero. Fechou os olhos por alguns segundos e ao desfazer o gesto focando a gaiola... Não...

Não havia cavaleiros do apocalipse, nem bruxo, nem ladrões, nem eclipse total, nem gatos esfomeados, nem fuzis da sétima cavalaria. Apenas seu canário, no segundo puleiro da gaiola, completamente afônico, em razão de uma canária que o flertava do terceiro galho da macieira.


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