18/01/2009 - Arrancando os cabelos
Deitada sobre lençóis estreitos e amarrotados, uma menina, de olheiras roxas e olhos vermelhos, chora abraçada com um urso imenso e esbranquiçado. O urso, embora de pelúcia, chama-se Adolfo. O mesmo nome do namorado que o trouxe enrolado em papel celofane em um de seus aniversários. E, entre soluços, ela faz daquela cama seu palco e daquele urso, seu drama.
- Não pode ser verdade. Diz para mim, Adolfo, que isso não é verdade. Por que essas coisas só acontecem comigo? Por que toda vez sou eu quem tem que sofrer, chorar, arrancar os cabelos? Por que as mulheres têm de ser assim? O Adolfo, aquele seu xará, a essa altura deve estar ao lado de outra idiota, bebendo, fumando, beijando, amando, enganando... Ele não sofra, ele não chora, ele não arranca seus cabelos. E sabe por quê? Por que é homem, igual a você Adolfo, e homens não amam. Homens, no máximo, gostam. E gostar é pouco demais. Essa coisa de sentimento é uma doença exclusivamente feminina. Ah! Não fique me olhando assim Adolfo. Estou horrível. Essas noites mal dormidas, essas olheiras, esse cabelo sem escovar, essa falta de vontade de tomar banho, de escovar os dentes, de colocar uma roupa nova, de abrir a janela. Olha o que sobrou de mim, Adolfo? Não sou nem sobra da mulher que eu fui. Ah! Acho que mamãe tem razão, estou com depressão. E uma depressão profunda. Estou com medo. Tenho quase certeza de que isso não tem mais cura. Eu vou morrer, Adolfo. Não adianta ficar com pena de mim, com esses olhos fundos e brilhantes. O meu fim já é certo. Não tem nada que você pode fazer por mim.
Ela levanta a cabeça, olha para o urso por um ângulo diferente, e sorri...
- Pensando bem, você poderia me fazer um favor sim, você pode dizer para aquele seu xará, que eu nunca o amei. Afinal, não posso dar o trunfo da minha morte para ele, não é? Ele vai ficar ainda mais metido se souber que eu morri por causa dele. Não é justo dar todo esse crédito para ele, ainda mais se ele estiver com a Marcinha, com a Aninha, com a Paulinha, com a fulaninha, com a vizinha, com a rainha da Inglaterra. Quando souber do meu óbito vai agarrar ainda mais elas com a sensação de que é o melhor homem do mundo. Eu não quero que ele saiba que eu sofri, que eu chorei, que eu arranquei meus cabelos por sua causa, entendeu Adolfo? E mais, não quero nem que ele saiba que eu morri. Ah! Do que eu estou falando? Eu já morri para ele há muito tempo. Desde a primeira traição. E você é tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido com ele, Adolfo. Você teria coragem de me trair, Adolfo. Fala! Falaaaaaaa! Eu sabia, vocês homens são todos iguais. Acho que vou lhe dar um sobrenome Adolfo, que tal Adolfo Hitler?
A menina junta forças em sua revolta e fica em pé na cama, como que querendo ficar ainda mais poderosa frente ao urso. E, num súbito de ódio ou raiva, começa a estrangular, a estapear, a espancar Adolfo.
- Este tapa é por ter dito que gostava de mim. Este outro, pelas vezes que você me disse que a gente iria casar, ter filhos, envelhecer juntos. Este, por aquele beijo no alto da roda-gigante. Eu acreditei naquilo, sabia. Eu fiz daquele momento o auge da minha vida. Este tapa é pelos dias que eu fiquei lhe esperando em vão depois que lhe mandei embora. Este outro, por você nunca ter me mandado uma mensagem, por você nunca mais ter ligado, por você ter desistido de lutar por mim. Este outro é pelas páginas de amor que você me fez escrever. E agora? O que eu faço com elas? Queimo? Rasgo? Leio? Choro? Sofro? Eu devia era lhe matar, sabe Adolfo. Ao contrário de ficar aqui sofrendo, chorando, arrancando meus cabelos eu deveria era lhe matar. Maldito dia em que você chegou aqui com esse urso. Podia ter me dado um perfume, um buquê de lírios, um sapato. O perfume seca, os lírios secam, os sapatos se acabam nessas estradas que eu corri atrás de você. Mas e esse urso? Esse urso não morre, não desaparece, não acaba. Fica com essa cara cínica, fingindo que nada aconteceu, olhando-me dia e noite. É a mesma cara de sem-vergonha que você me encontra pelas ruas, pelas praças, pelas festas. Ah! Isso tudo foi planejado. Você quis deixar algo de seu aqui me atormentando, me espionando, me enlouquecendo para sempre. Quantas vezes eu já beijei esse urso pensando que fosse você! Quantas vezes eu já pedi desculpas a esse urso pensando que fosse você! Quantas vezes eu já abracei esse urso querendo amar e ser amada por você! Quantas vezes eu já pedi a esse urso para você voltar! Mas ele não me beija de língua. Mas ele não entende as minhas razões. Mas ele não conhece o caminho do meu prazer. Mas ele não sabe onde você está. E se sabe, não me diz.
Aos soluços, a menina deita no corpo do urso, como que pedindo colo.
- Você é o culpado de eu ter me tornado essa pessoa horrível. Eu sempre desconfiei de você, Adolfo, porque tive medo de lhe perder. E esse ciúme descontrolado acabou, justamente, roubando você de mim. Mas você sempre teve fama de cafajeste, por que seria diferente comigo? Você disse que me amava, que queria mudar, começar uma vida nova, ser um homem diferente, mas eu jamais confiei nisso. Pode me chamar de insegura, mas você precisava continuar indo na casa da Dorinha, ligando para Soninha, estudando com a Carlinha? Precisava? Eu sou de carne e osso, eu tenho minhas fraquezas, meus sentimentos, minhas tempestades. Ah! Eu nunca dei valor aos seus sentimentos. Na verdade, acho que você me amou e eu tive medo. Eu nunca lhe dei espaço suficiente, eu nunca lhe dei confiança suficiente, eu nunca lhe dei oportunidade suficiente. Os fantasmas dominaram a minha cabeça e eu dei ainda mais vida a eles. Você me amou e eu tive medo. Medo de lhe perder, medo de amar menos que você, medo de ter medo. ah! Me abraça, por favor, me desculpa, me perdoa, vamos esquecer tudo, vamos tentar de novo, quem sabe recomeçar, me beija, me põe no colo... Você me amou e eu tive medo, medo, medo...
A mulher se envolve nos braços do urso, beija sua orelha e, em seguida, coloca a mão sob o travesseiro e tira dali uma tesoura. Com a frieza de uma assassina, ela empunha aquela lâmina, diz palavras de amor aos seus ouvidos, mordisca seus pelos, e enfia a tesoura, como uma lança, no pescoço do urso. Adolfo é assassinado. Não grita, não corre, não reage. Ela enfia muitas vezes a tesoura no pescoço do urso a ponto de abrir um buraco naqueles pêlos, chora alto, sorri de um jeito estranho, perde o fôlego e parece se contentar ao ver aquele sangue, ou melhor, aquela espuma branca saindo do pescoço do urso de pelúcia.
- Você não devia ter brincado comigo, Adolfo. Você não sabe os limites de uma mulher apaixonada. E por mais que você me amou, eu lhe amei mais. Aliás, eu lhe amei demais. E não ouse dizer o contrário. Você é o ruim dessa história. Você é o sapo que tentou ser príncipe. Você é o culpado do meu crime. Eu sou apenas uma menina, sonhadora, ingênua e apaixonada. Eu amo, eu sofro, eu choro, eu arranco meus cabelos..
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