21/05/2009 - A senhora ainda não voltou
Já se vão seis meses sem me deparar com aqueles óculos arredondados escondendo seus olhos pequeninos. Já se vão seis meses sem vê-la ficar vermelha depois de dois copos de caipirinha. Já se vão seis meses sem ouvir seu bom-dia antes mesmo do galo cocoricar. Já se vão seis meses sem que se bata mais sabão de soda na velha lata de tinta. Já se vão seis meses sem que as tartarugas comam sua salada de frutas. Já se vão seis meses sem que as roupas sejam chuleadas por suas mãos. Já se vão seis meses sem que o radinho de pilha fale uma palavra sequer. Já se vão seis meses sem que as contas de seus terços sejam contadas. Já se vão seis meses sem aqueles chinelinhos de dedo surrados andando pra lá e pra cá. Já se vão seis meses sem que o café chegue até São Benedito. Já se vão seis meses sem que ela traga um raminho novo de flor para enterrar no jardim. Já se vão seis meses sem que eu não tenha torresmo em minha marmita. Já se vão seis meses sem polenta com frango caipira nas noites de quinta-feira ou nos almoços de domingo. Já se vão seis meses sem seus choros solitários. Já se vão seis meses sem seu contentamento triste. Já se vão seis meses sem sua presença tímida, discreta, porém constante. Já se vão seis meses sem seus cochilos no sofá da sala de televisão. Já se vão seis meses sem que o quintal de sua casa quare mais roupa. Já se vão seis meses sem que bocas recebam de sua mão o corpo de Cristo. Já se vão seis meses sem que aqueles brincos portugueses que ficavam em suas orelhas italianas estão desabrigados. Já se vão seis meses sem que aqueles seus braços pintados pelo tempo abracem alguém. Já se vão seis meses sem entender muita coisa. Já se vão seis meses sem compreender a vida nova. Já se vão seis meses sem que eu lhe traga carne do açougue do João no guidão da bicicleta. Já se vão seis meses sem que a senhora me conte sobre seu canteiro de hortelã, tão cobiçado pelos vizinhos. Já se vão seis meses sem que eu lhe dê o braço para a novena de Natal. Já se vão seis meses sem que me torture com as temidas trocas das cortinas da sala. Já se vão seis meses em que a senhora me busque na escola. Já se vão seis meses desde o dia em que a senhora resolveu partir.
E agora, as flores de maio se abriram e a senhora ainda não voltou para colocá-las no centro da mesa.
E agora, as festas juninas estão por chegar e a senhora ainda não voltou para tomar um golinho de quentão com pastel.
E agora, o frio chegou e a senhora ainda não voltou para esquentar sol no quintal.
E agora, as ladainhas de São João, São Pedro e Santo Antônio já ecoam e a senhora ainda não voltou para dizer: rogai por nós!
E agora, já se vão seis meses de saudade e a senhora ainda não voltou.
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