24/05/2009 - A inquisição das paixões guardadas
Uma mulher, sozinha no palco, observa um armário com várias camadas do verniz do tempo.
- Perdi a conta de quantas vezes abri essas suas portas. Um encontro diário. Aliás, vários encontros por dia. E até agora não sei, ao longo desses anos todos, se eu mais lhe odiei ou amei. Você me trouxe sorte e azar em doses variadas. Já encontrei aves raríssimas dentro de você e também cobras e lagartos. Tantas vezes me surpreendeu positiva ou negativamente. É certo que na maioria das vezes eu já lhe abria com alguma coisa em mente, mas em várias oportunidades não achei propriamente o que buscava. Você me presenteou, me iludiu e me enganou em proporções díspares. Ao mesmo tempo em que você me deu glamour, fez-me ridícula. E eu não lhe perdôo por isso. Afinal, tanto pessoal quanto profissionalmente, muita coisa estava em jogo. E você sabia disso. Isto é, eu acho que sabia.
A mulher avança em direção ao armário e coloca sobre ele suas mãos, recostando sua cabeça em uma das portas.
- Até hoje eu me lembro perfeitamente do dia que você chegou. Depois de ter gastado boa parte do meu salário de secretária para lhe tirar da loja, os entregadores lhe trouxeram aos pedaços e lhe montaram aqui, neste mesmo quarto, bem diante dos meus olhos. Era uma manhã fria de sábado. Estava com preguiça de me levantar da cama quanto bateram na porta. Era você. Desde o primeiro dia já se habituou a me atormentar. Vesti um hobby e abri a porta. Eram os entregadores. Fiz um café e quando voltei, só havia o responsável pela montagem. Tomamos café, conversamos, apaixonamos e nos amamos sobre as pranchas de sua madeira. Foi como fazer amor debaixo de uma cerejeira. E quando eu vi você todo montado tive a certeza de que perderia aquele homem de poucas palavras e muitos olhares. Era a sina daquele homem. Ele tinha que montar outros armários, viver outros amores, lançar outros olhares. Eu teria que me contentar com você.
Ela se afasta alguns passos, moída naquela paixão efêmera, disparando a falar:
- Como vingança, poderia ter guardado em você cobras, tigres, escorpiões. Como fui tola. Devia ter lhe dado o destino que merecia por ter me trazido e levado aquele homem. Devia ter guardado em você plantas carnívoras, ovos podres, espinhos, varejeiras, esterco. Eram tantas coisas ruins que eu poderia ter posto em você por me fazer sofrer. Até mesmo o filho que abortei, na sétima semana, após escorregar e bater as costas em você eu deveria ter guardado em seu ventre. Para que o espanto? Ele era, bem dizer, o seu filho. Afinal, foi você que pariu aquele homem aqui em casa. No entanto, eu só depositei em você o que eu tinha de melhor. Tudo o que eu mais gostei eu coloquei em suas repartições. Aliás, eu me reparti em várias e me guardei em você dia após dia. Hoje, você é a minha memória.
Ela se aproxima e, de uma só vez, escancara aquelas oito portas. No interior daquele armário, roupas e mais roupas, alguns sapatos e acessórios. Mas, em sua maioria, roupas de vários modelos e cores.
- Tudo o que eu fui durante os últimos 20 anos passou por você. O vestido com o qual eu conheci o meu primeiro marido. A camiseta que eu vestia quando ele me bateu pela primeira e última vez. O blazer que fui para a minha entrevista de emprego. O chalé que usei no velório de mamãe. O conjuntinho que vesti para entrar na maternidade e ganhar meu filho. A calça jeans que usei para fechar o financiamento deste apartamento. O biquíni com o qual conheci o mar. A saia de pregas com a qual tomei meu primeiro porre. A camisola preta do meu último cigarro. O lingerie que vestia quando fui encontrada depois de uma overdose de remédios. Essas roupas, assim como você, estão impregnadas de histórias. Cada cabide é um novo velho capítulo desta minha vida. Em cada gaveta, tábuas e mágoas. As alegrias e fantasias os cupins fizeram o favor de roer.
A mulher revira aquelas roupas como se buscasse algo, mas, no fim das contas, entra no armário e se mistura com todos aqueles tecidos.
- Quantas vezes eu já me escondi aqui. Escondi de ladrão, de meu filho e de mim mesmo. Na verdade eu queria era morar em você. Mas era preciso sair para comer, para ir ao banheiro, para trabalhar. Você me vestiu muitas vezes, mas nunca alimentou os meus sonhos. Hoje eu vejo que fui uma boneca em suas mãos. Vestiu-me de fada. Vestiu-me de bruxa. Eu queria ter morado em meio a essas células de cerejeira, mas você só quis brincar com o meu destino. Desde o primeiro dia, tudo entre nós foi brincadeira. Eu achei que poderia guardar meu mundo em você. E você, achou que poderia me fazer de seu mundo. E assim nos vestimos e despimos. Você já me viu nua por milhares de vezes. Eu confiei em você. Eu me atrelei a você. Eu me entreguei a você. Cada perfume, cada momento, cada emoção que eu trazia da rua, cravada em minhas roupas, eu fazia questão de lhe entregar. E você cheirava minhas roupas, lambia minhas costuras, violava meus bolsos. Você e aquele homem que me deitou e colocou um filho em minha barriga sobre esse lenho são a mesma pessoa. Você me usou. Você se aproveitou. Você me escravizou. Fui sua dama. Fui sua rainha. Fui sua piranha.
A mulher, já fora do guarda roupa, tira toda sua roupa, a dobra e guarda em uma gaveta. Totalmente despida de qualquer pudor, vestida apenas pelo ódio, ela pega um galão de álcool e embebeda aquele armário num último drinque a dois. Em seguida, risca um fósforo e ateia fogo. Ela nem chora nem sorri, tampouco dá demonstração de qualquer loucura.
- Depois que uma árvore suga tudo o que pode em torno de si, ela seca e se incendeia. Ou por algum raio ou pelas mãos de algum inconseqüente que passa pela estrada. E hoje, você é a minha árvore e eu sou a sua inconseqüente.
O armário é consumido pelo fogo em conjunto com roupas, histórias e memórias enquanto aquela mulher senta no chão, diante das chamas, respira fundo, bate palma e pede bis.
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