Daniel Campos

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02/11/2008 - Zé do Tacho ou Zé do Túmulo?

"Olha a goiabada! Olha a goiabada cascão! É coisa fina, senhora. É coisa que ninguém mais acha, senhor". De forma cantada e com um sorriso açucarado, Zé do Tacho chama a clientela para desfrutar de suas goiabadas na banquinha da feira. Ofício passado de pai para filho, há muitas gerações, aquele José havia completado 68 anos de doceiro no último dia 29. Para fazer justiça a Romeu e Julieta, também produzia uns queijinhos minas. Era difícil quem resistia àquela tentação. Tinha freguesia certa, mas sempre chegava alguém querendo experimentar de sua mão boa.

Sábado e domingo ficava na feira, nos outros dias vendia na porta de sua casa mesmo. E o comprador ainda era convidado para entrar, tomar café. Coisas de gente hospitaleira. E aquele doceiro não fazia de rogado ao esticar as prosas com seus clientes ao lado do tacho. Um belo tacho de cobre, alimentado pela brasa de um fogo de chão. O tacho chegava a ficar avermelhado diante de tamanha quentura. E as goiabas, já sem casca e semente, derretiam formando uma pasta rosa. Ah! E o açúcar, pesado no olho de seu José, brilhava o doce. Eram horas e horas ali mexendo com uma colher de pau imensa, que tinha mais de trinta anos.

José enviuvou sete vezes e daí desistiu de casar. Diziam que ele era violento, que tinha matado suas esposas. No entanto, Zé do Tacho parecia tão calmo, tão sereno, tão tranqüilo. No entanto, reza a lenda que doce de gente ruim não dá ponto. E aquela goiabada era sem defeito, sem tirar nem por. Coisa fina mesmo, como ele dizia. E o velho ficava aborrecido com as lendas que o cercavam. Para ele, as mortes das esposas foram todas naturais. Luzia morreu de pneumonia. Noêmia, de tuberculose. Gilda, de sarampo. Isabel, de água no pulmão. Perina, de convulsão da braba. Francisca, de maleita. Marinalva, de doença ruim.

Essas mortes todas mexeram com os miolos de Zé do Tacho e lhe deram uma mania estranha. Era no Dia de Finados que ele fazia a maior de suas loucuras. No dia 2 de novembro ele não acendia fogo, tampouco vendia goiabada. Afinal, era o dia de seu velório. Havia quem ficasse com medo, quem evitasse passar perto de sua casa, quem ignorasse sua maluquice e quem o velasse. Todo ano era a mesma coisa. No dia dos mortos, seu Zé também morria. Já no final da noite de Todos os Santos, vestido com sua melhor roupa, entrava dentro no caixão que tinha comprado há muitos anos com as economias vindas da goiabada.

O cenário escolhido para chorar o defunto era a própria sala de sua casa. O caixão sobre a mesa, todo enfeitado com flores. Ele mesmo fazia questão de escolher os crisântemos dias antes. Isso sem falar nas velas de libra que queimavam ao lado de seu corpo. Como nunca teve filhos, amigos e curiosos ajudavam nos preparativos. E seu Zé ficava deitado, quietinho e de olhos fechados. Quando dava três horas da tarde, o cortejo saia rumo ao cemitério. No começo, levavam-no nas costas. De uns anos para cá passou a ser levado na carroça de seu Ernesto. Como não tinha muita coisa a fazer na pequena cidade de Chapelão, aquele velório era motivo de festa. No ano passado, mais de cem pessoas acompanharam mais uma despedida de seu Zé do Tacho.

Quando chegavam ao cemitério, um dos amigos fazia a vez do padre, que não aceitava comparecer naquela blasfêmia, e dizia algumas palavras como que encomendando o corpo. O povo jogava algumas flores e ia embora, deixando o caixão, aberto, sobre a lápide do túmulo onde ele havia enterrado suas sete mulheres. Isso mesmo! Colocara as sete em um só lugar. Ao lado, plantou vários pés de goiaba. E seu Zé do Tacho passava o fim da tarde e a noite de Finados ao lado de seus amores. O pessoal da cidade já estava querendo trocar seu apelido para Zé do Túmulo.

Mas o que será que passava na cabeça dele? Será que ele queria morrer, de fato? Ou será que aquilo era só um teatro para aumentar suas vendas? Será arrependimento? Será amor? Será que ele sonhava com um céu de goiabas? Será que ele ficava feliz com aquilo tudo? Será que suas lágrimas eram de verdade? Será que aquele gesto era um meio de enterrar sua solidão? Será que lhe dava prazer aquele cheiro de flor morta com goiaba madura? Será que ele queria que os bichos da goiaba devorassem sua carne? Será?

Seja como fosse, com sol ou chuva, Zé do Tacho fazia aquele ritual há quatorze anos. O que ele pretendia com tudo aquilo, talvez só ele ou aquelas goiabas soubessem. O fato é que no dia seguinte ao velório, o tacho já estava frigindo em brasa. E a casa de seu Zé era um entra e sai danado. O povo queria ter certeza de que ele continuava vivo. Afinal, haveria um ano que ele não voltaria mais do cemitério. Longe das suas goiabas, comentavam que o único jeito de acabar com aquela loucura era se ele casasse novamente. Mas o medo de ter o mesmo destino das outras sete, afugentava as noivas e anunciava mais um velório do Zé do Tacho. Ou seria, Zé do Túmulo?


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