Daniel Campos

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21/05/2015 - Vida de cachorro

Meu cachorro me falou que não quer mais ser cachorro, que não aguenta mais viver no osso da vida pós-moderna. Enjoou da ração que é todo dia sempre igual. Sente necessidade de ter crédito na praça para comprar o que vê nas propagandas da televisão. Quer fazer terapia para passar incólume pelos pets shops. Meu cachorro está depressivo com saudade de ser cachorro de verdade, seja correndo pelo campo, rolando na grama, latindo quando lhe der na telha. Agora meu cachorro tem que respeitar a lei do silêncio do condomínio estando, portanto, terminantemente proibido de uivar para o melhor da lua cheia que é na noite alta. Tem saudade até do tempo que tinha uma pulguinha ou outra para passar boas horas se coçando. Hoje com esse tanto de shampoo e condicionador canino está tão limpo e macio que parece mais enfeite que cachorro. Ele queria mesmo era correr livre, rosnar pra carteiro, roçar nas cadelinhas, cheirar o traseiro alheio. Mas agora vive entre paredes, espiando o mundo apenas da janela do décimo sétimo andar. E quando sai é de coleira. Deixou de ser cachorro para ser um produto. Ele sente falta do tempo que eu tinha tempo para brincar com ele e não apenas para postar suas fotos nas redes sociais. Meu cachorro anda tão estressado que morde o próprio rabo e deita de barriga para ficar olhando pro teto. Odeia o funk, o sertanejo universitário, o pagode dos vizinhos. Queria mesmo era poder escutar o som do vento batendo nas árvores, a cantoria da passarada, as prosas das pessoas que tinham muita história para contar. Hoje meu cachorro tem as unhas compridas porque só anda no porcelanato. Queria mesmo era pegar carrapicho, correr atrás de galinha, deitar em qualquer lugar. Queria poder comer comida de verdade, meter as fuças onde quisesse e ainda sorrir numa total falta de compromisso, pois na sua agenda só constaria uma anotação: ser cachorro.


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