Daniel Campos

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Tuti fruti

Chega sem pedidos de licença. Acomoda uma xícara de leite com café e uma cestinha com um pão de queijo enorme numa mesa pequenina. Mas no primeiro momento, não toca na xícara nem na cestinha, não beberica o leite nem belisca o pão de queijo. Traz consigo logo três livros. Não se contenta com uma só história. Começa a folhear um livreto com fotos de animais acompanhadas de pequenas mensagens. Devia ser divertido, pois ria compulsoriamente durante uma página e outra. Não estava nem ai para quem estava do seu lado. Talvez risse daquela forma porque fosse desligada ou porque quisesse atenção. Atenção? Cabelos longos e crespos, sardas no rosto e uma blusa colorida de crochê. A leitura segue.

Ao seu lado esquerdo, uma senhora toda esticada por algum cirurgião plástico tomava suco verde impressionada com um livro de anti-religião. Ao seu lado direito, um rapaz copiava algumas coisas de um livro específico, como se fizesse algum trabalho escolar. A sua frente, uma moça engolia seu café enquanto lia revistas da semana. Na mesa ao lado, um senhor lia uma biografia de Getúlio Vargas. De um jeito ou de outro, todos tentavam se concentrar. A menina, na casa dos 20 anos, gargalhava. Cachorros, leões, pingüins em preto e branco se espalhavam pelos seus olhos. Ela sorria. A senhora do suco verde começava a se incomodar e tossia em tom de repúdio. Mas as tosses não tinham o menor efeito sobre a menina.

Menina que ora lia em posição normal ora tombava a cabeça sobre a mesa ora cruzava as pernas em cima da cadeira. Não se aquietava. O rapaz do trabalho parecia acostumado, pensava estar em uma sala de aula. Os vendedores da livraria nada diziam, apenas cochichavam entre si. A senhora, cheia de plástica, mostrava-se defensora ferrenha da lei da mordaça. De repente, a menina coloca o pé esquerdo sobre a cadeira vizinha. Uma calça jeans surrada e um tênis vermelho também surrado. A calça não combinava com o tênis que por sua vez não combinava com a blusa. Mas todos combinavam com a menina.

O senhor que tirara o paletó do armário para ler o livro de Vargas achava bonito o jeito espalhafatoso da menina e sorria no canto da boca. A menina começa a comer seu pão de queijo sem tirar os olhos do livro. Ria com a boca cheia, sem cerimônias. Tomava seu capuccino e os vendedores tinham medo dela derrubar o líquido sobre um dos livros e ainda achar engraçado. O rapaz termina seu trabalho, vai embora e ela fecha o livro ainda com ar de riso. Em uma das mãos segura a xícara, na outra o pão de queijo e com o queixo abre o segundo livro. Mais uma vez esgarça seus lábios e sorri, agora de um amontoado de crônicas. O livro não tem fotos, só texto, mas ela gargalha da mesma forma para desespero da senhora ao seu lado esquerdo, que está a ponto de chamar o gerente. Para alívio de muitos, ela termina o café. Não borrou o livro, só engordurou um pouco os lábios, dando consistência ao seu gloss de tuti-fruti.

O senhor que lia Vargas, todo galanteador, muda de mesa e senta-se na cadeira desocupada do rapaz. A mulher que folheava revistas se indigna com a cena e sai da mesa. Não se dá ao trabalho nem de levar as revistas de volta ao estande. A senhora de brincos de pérolas não tira os olhos da menina. Já nem lê mais. Vira página por página de forma mecânica. A menina continua com o comportamento adolescente não dando importância a nada do universo a sua volta. A senhora se corrói por dentro. O senhor se inclina para o lado da menina. Outra vez, ela fecha o livro, empurra-o na direção da senhora e se prepara para abrir o terceiro. Enquanto desembrulha um chiclete a senhora lê o título do livro e o retira das mãos da menina. Rapidamente o coloca nas mãos do vendedor. "Vou levar esse aqui". A menina não entende nada e a senhora sai como não querendo ser vista.


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