Daniel Campos

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28/09/2008 - Tempo, temporais

No fundo da minha retina surge uma quarta-feira amarelada, perdida no tempo de uma cidadezinha com cheiro de capim molhado. Entre o vai-e-vem do dia, o relógio confecciona as fiadas da tarde. Estou no centro da cidade. Já passei por lojas, carros, agências bancárias, banca de revista, palmeiras, bancos de madeira, coreto e um chafariz seco. As águas coloridas só chegam à época do Natal. E estou longe do dia 25 de dezembro. Não sei se é outono ou inverno. Estou em uma outra estação. E meu trem já está partindo, indo entre memórias e pensamentos.

Passo por pessoas apressadas, por uma gente cansada, por uma multidão atarefada, atarantada, ocupada demais para notar o meu caminho. Passo pelo ponto de táxi de um certo Antônio que já havia puxado o carro dali. Passo por entre pombos do ar. Passo pelo pipoqueiro de pipocas coloridas. Passo por rodas de conversa, por senhoras de sombrinha, por senhores de chapéus. Passo e olho para o relógio no alto da torre da matriz. Os ponteiros anunciavam poucos minutos para as três horas da tarde.

Eram três horas da tarde e as crianças merendavam nas escolas.
Eram três horas da tarde e muitas mãos já desistiam das esmolas.
Eram três horas da tarde e o bolo de milho era servido com café.
Eram três horas da tarde e o vira-mundo andava a pé.
Eram três horas da tarde e vinha a misericordia da libertação.
Eram três horas da tarde e havia um bater mais forte no coração.
Eram três horas da tarde e o apito da fábrica tocava.
Eram três horas da tarde e a lua cheia já espreitava.
Eram três horas da tarde e o tempo passava a assoviar.
Eram três horas da tarde e o Cristo morria na cruz para nos salvar.

Passo pelo tempo e subo degraus, escada, escadaria. Quantas noivas apreensivas já subiram ali, com suas caudas brancas arrastando pelas pedras? Quantos aflitos já passaram por ali à procura de uma outra esperança? Quantas crianças já brincaram ali, subindo e correndo, sorrindo e descendo? Quantos pagadores de promessa já escalaram de joelhos aqueles degraus? Quantos já tiveram medo de cair dali ou ali e buscaram o apóio de um braço? Quantos sonhos, quantas expectativas, quantos desejos, quantas dores, quantas crenças incrustadas por entre as pedras cor de terra.

Compartilhando dos sentimentos ali deixados, subo cada um daqueles degraus. Por maior a minha fé, sinto-me pequeno demais diante daquelas portas imensas, daquelas torres amareladas, daquele carrilhão de sinos. A pia de pedra com água benta e o sinal da cruz. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A invocação, a proteção, a renovação do batismo naquele gesto que se já repetiu durante incontáveis vezes. O piso num desenho preto e branco me faz viajar pelos ladrilhos do tempo. Estou em Jerusalém. Estou em Belém. Estou num tempo aquém e além de mim.

Não estava na quaresma, mas pelo vidro de uma das portas, dava para ver alguns trechos das imagens de Nosso Senhor Morto e de Nossa Senhora em pranto, que escapavam do pano roxo que as cobria. Ah! Quantas as vezes que acompanhei aqueles andores de dor e dores pelas ruas doloridas de uma sexta-feira santa... Mas hoje não é sexta e sim quarta-feira. Mas também não é missa de cinzas. É apenas tempo comum. Se é que existe algum tempo que possa ser considerado comum. Senhoras se cumprimentam com abraços, com beijos no rosto. Senhores apenas balançam a cabeça, em sinal de respeito.

Entro na nave e aqueles lustres de velas e lampadinhas, aquelas pilastras barrocas, aqueles vitrais coloridos, aquelas andorinhas em sobrevôo, aqueles altares abraçando a igreja. Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Sant?Ana, São Joaquim, São Sebastião... Mais à frente, no altar principal, São José e seus lírios. No corredor central, um tapete vermelho. As fileiras de bancos envernizados embaralhavam minha vista. Aos pés do Santíssimo, diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus e de antúrios vermelhos, fiéis rezavam o terço. Ao lado do coral que foi trilha sonora de tantos domingos recém-amanhecidos, a imagem de Santa Cecília, padroeira da música. Na mesma simetria, só que do lado esquerdo, o quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Próximo do quadro, um microfone e um violão. Milton, um sujeito negro de vozeirão tamanho, dedilhava aquelas cordas de aço. Famoso por suas ave-marias em casamentos, Milton era presença garantida nas novenas de Nossa Senhora.

?Se um dia um anjo declarou, que tu eras cheia de Deus
Agora penso quem sou eu para não te dizer
Oh mãe, cheia de graça, oh mãe
Cheia de graça, oh mãe, agraciada?...

Sob a regência do padre, uma procissão de mulheres caminha pelo corredor principal. Mulheres trazendo rosas. Mulheres trazendo amor, devoção e fé. Mulheres trazendo as sementes de Maria. A primeira delas, dona Ofélia, vem com uma rosa rosada nas mãos. Vem caminhando e cantando e rezando e puxando aquelas outras mulheres, que iriam coroar de rosas Nossa Senhora. Difícil não se emocionar. O sal molhado escorre pelo rosto feito um mar que não havia ali, trazendo ondas de tempo, temporais. O ar lá fora parece outro. O mundo lá fora parece outro. O existir lá fora parece outro, outrora.

Eram três horas da tarde e os sinos badalavam pela cidade.
Eram três horas da tarde e abria-se uma nova realidade.
Eram três horas da tarde e um casal dividia um picolé.
Eram três horas da tarde e eis o mistério da nossa fé.
Eram três horas da tarde e vinha uma vontade de sair pelos céus.
Eram três horas da tarde e mulheres se prostravam em véus.
Eram três horas da tarde e um rouxinol cantava entardecido.
Eram três horas da tarde e o sol ainda não se dava por vencido.
Eram três horas da tarde e o tempo desacelerava seu caminhar.
Eram três horas da tarde e o Cristo morria na cruz para nos salvar.


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