Daniel Campos

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30/03/2008 - Tempo nosso

Sou do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça, em que vassoura era dourada de trigo e o ferro ardia nas mãos das passadeiras que sopravam suas brasas. Sou do tempo em que se benzia passando terços pelo nosso corpo, uma, duas, três vezes. Sou do tempo em que se achava água de mina no quintal, bandido era coisa de cinema e o amor era etcetera e tal. Sou do tempo em que o mundo era dividido entre uma águia capitalista e um urso comunista. Sou do tempo em que cigarra cantava para chover, gato caia em pé e algodão era uma flor. Sou do tempo em que o disco rodava na ponta de uma agulha e o café, depois de ser torrado e socado no pilão, escorria negro pelo coador de pano.

Sou do tempo em que se acreditava e se sonhava e até se praticava o ato de amar. Sou do tempo em que o bolo era batido à mão, o fogão era a lenha e o galo, o despertador de plantão. Sou do tempo em que os ramos de bambu varriam o terreiro e se ouvia os conselhos da lua para plantar, colher, podar, semear, cortar o cabelo e namorar. Sou do tempo em que roupa suja ficava no chão para quarar. Sou do tempo em que os prendedores de madeira ficavam pendurados na barra das blusas das donas-de-casa e o toucinho secava no defumador. Sou do tempo em que as crianças ficavam em um chiqueirinho, o sabão em barra era batido em casa e os alhos vinham em réstia.

Sou do tempo das procissões à vela e o pecado era mais temido do que o carnê do IPTU. Sou do tempo em que às rosas falavam e fingíamos não escutar. Sou do tempo em que roberto carlos era terrível e caetano tinha caracóis no cabelo. Sou do tempo em que se caçavam, ou melhor, prometiam caçar os marajás. Sou do tempo em que os casais andavam de mãos dadas sob as luminárias da praça. Sou do tempo em que a maçã e o abacaxi eram refrigerantes, data de validade não existia e as frutas eram colhidas maduras. Sou do tempo em que as marias eram de fumaça, os beatles passeavam em um submarino amarelo e os padres caminhavam de batina preta.

Sou do tempo em que romeu e julieta eram mais do que um pedaço de goiabada com queijo. Sou do tempo em cigarro era um galanteio e câncer só mais um signo na lista zodiacal. Sou do tempo em que leão só mordia no jogo de bicho e CPI era uma sigla não identificada. Sou do tempo em que futebol era um carrossel caipira, que comida não era transgênica e que vaca não precisava ir para o hospício. Sou do tempo em que dengue era um inofensivo boneco da Xuxa, papagaio era maranhão e que don era Dom Pedro. Sou do tempo em que se ouvia rádio e que piano chamava tom jobim. Sou do tempo de mussum e zacarias nas noites de domingo. Sou do tempo em que se cantava para estourar pipoca; comia-se doce de leite no canudo e vontade de comer alguma coisa dava lombriga. Sou do tempo em que água era guardada dentro do barro, bala era puxa-puxa e panelas eram areadas com areia.

Sou do tempo da moral e das morais de Vinicius. Sou do tempo das porções de lambari, dos partos de parteira, das plantações de lua crescente e das conversas nas calçadas. Sou do tempo das muretas e das sardinhas quaresmais. Sou do tempo em que carne era embrulhado em jornal, que coca-cola era de vidro e que palhaço só existia no circo. Sou do tempo em que se tomava conhaque apenas para rebater a friagem; a manta era de retalhos e os vaga-lumes brincavam pela noite. Sou do tempo em que se dava benção e ouvia-se Deus te abençoe. Sou do tempo em que se soltava rojão em dia santo. Aliás, sou do tempo em que se guardava dia santo.

Sou do tempo em que o mel vinha em favo e o leite era bebido espumoso no curral. Sou do tempo em que uma fofoca era bem vinda, passava-se sebo nas botas e o mal era coisa da meia-noite. Sou do tempo em que casa tinha porão e ilhas tinham tesouro. Sou do tempo em que padeiro e verdureiro passavam de carroça na porta de nossa casa e ovo choco tinha de ser jogado de costas para cima do telhado. Sou do tempo em que gordura de porco era coisa sadia, remédio era uma vez na vida e outra na morte e bife frito tinha perfume. Sou do tempo em que se lavava cachorro no quintal, chuva era um bolinho e computador era uma dor muito grande. Sou do tempo em que o quadro era negro, as provas eram ditadas e as tabuadas eram tão temíveis quão as piores assombrações. Sou do tempo em que o homem era super, a mulher era maravilha e a pantera era cor de rosa.

Sou do tempo em que pão francês custava a menor de nossas moedas, pelo de bode na carteira trazia dinheiro e faca era amolada na pedra do quintal. Sou do tempo em que o arroz, o feijão e o milho eram vendidos a granel e laranja, em dúzia. Sou do tempo em que agrotóxico era um palavrão e frango caipira era morto no cabo de vassoura. Sou do tempo em que os sorveteiros tinham picolé de groselha, de coco queimado e de maçã. Sou do tempo em que doce era bem apurado, quase açucarado. Sou do tempo em que xadrez era roupa de festa junina, época em que se rezava terço, soltava traque, acendia fogueira e erguia o quadro dos três santos. Sou do tempo em que o inverno pedia chocolate-quente, quentão e outras medidas drásticas para amenizar o frio.

Sou do tempo em que os casais faziam bodas de prata, de outro, de diamante. Sou do tempo em que se bordava em cruz. Sou do tempo em que se tinha roupa de missa. Sou do tempo em que bonecas eram de pano e se levava sacolas de tecido para os mercados. Sou do tempo em que um olhar dizia mais do que um rosário de palavras. Sou do tempo dos embornais e do torresmo na marmita. Sou do tempo em que histórias cresciam na máquina de escrever. Sou do tempo em que diante de um relâmpago mais feio se rezava para Santa Bárbara. E por falar em temporal, sou do tempo em que se jogava sal em cruz e até peneira no quintal para amansar chuva braba.

Sou do tempo em que tragédia só acontecia na casa do vizinho, se dava corda em relógio e gravata era coisa de doutor. Sou do tempo em que roda-gigante era o cúmulo da aventura e macarrão era prato obrigatório aos domingos. Sou do tempo em que diploma era para ser colocado na parede, bolo de fubá tinha erva-doce e política era questão de vida ou morte. Sou do tempo em que goiaba não tinha bicho, carro esquentava na garagem e o céu pertencia aos aviões de papel. Sou do tempo em que o amor era atemporal. Sou do tempo em que o tempo existia.


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