Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Sarjeta

Sem atender as reivindicações do Ministério da Saúde, a fumaça de um cigarro mais atrevido requeima os tecidos da noite. Para os metereologistas, uma noite úmida. Para os desesperados, chuva à frente. Para os poetas, uma noite choramingando seu pranto tanto em forma de sereno.

Entre a fumaça, uma menina de rosto sujo pedindo esmola, um vendedor de botões de rosa nem sempre cor-de-rosa, um garçom vestido de garçom que escuta demais e um celular que toca o tema de um filme. Sobre esse pano de fundo, ela exibe seu portifólio de sorrisos. Outra cuba. O rum dos piratas de além mar. A coca-cola de uma geração proibida. O gelo dos ursos polares que estão derretendo. Todos esses elementos se misturando com a saliva daquela última Eva. E ela nem mesmo se chama Eva, não namora nenhum Adão, mas sabia de todos os pecados contidos em uma maçã.

A conversa gira, cadeira a cadeira, num circuito sem fim. Variedades. Um pouco de política, uma pequena exposição de economia, uma volta pelo esporte e muita, mas muita cultura. Cultura de calçada, de escritório, de fila de banco, de revista, de televisão... O que disse, o que usava, o que fazia, o que isso e o que aquilo. Os goles daquela bebida dos capitães ganchos contemporâneos impulsionam a língua daquela mulher dividida entre o sonho e a frustração. E no seu style fashion de happy hour, ela quer ser vista. Com toda discrição, mas quer ser vista e ouvida e sentida.

Depois de uma semana de trabalho, onde era o centro de tantas pessoas, quer ser tratada e também agir de forma diferente. Não quer que lhe venham perguntar como se faz para fazer o que precisa ser feito. Quer que lhe venham somente pra contemplarem seus encantos. E ela tem lá seu encantamento. Sem qualquer apelo à vulgaridade, comporta-se como uma oferenda. Bastava que os seus deuses a aceitassem.

Entre cubas e um violão mais assanhado, seus olhos se impõe como pranchas de navios piratas. Ela fica quietinha em seu canto, vista quase que tímida, mas extremamente perigosa. Ela sabe todos os movimentos daquele barzinho. Ela enxerga tudo, escuta tudo, inala tudo e se sente segura a ponto de se encher de certezas, ou melhor, de achismos.

Ela acha que o violão toca para ela. Ela acha que as luzes daquele lugar se voltam todas para ela. Ela acha que as pessoas estão ali por ela. Não é seu aniversário, não havia sido promovida ou passado em algum concurso, mas havia decretado que aquele era seu dia e ninguém podia dizer o contrário.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar