Daniel Campos

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19/10/2011 - Rua São Miguel, 71

Sem dúvida alguma, esse foi o endereço da minha juventude. Eu morava com meus pais nessa mesma rua, um pouco mais acima, mas a casa em questão era a de meus avos maternos. Conto nos dedos das mãos quantas vezes deixei de ir lá ao menos uma vez por dia ao longo de 25 anos de idade. Definitivamente, celebrei bodas de prata com aquela casa. Perdi a conta de quantos sorrisos, de quantos sonhos, de quantos poemas, enfim, do quanto de mim ficou impregnado naquelas paredes.

Ah! Quantos passos meus ficaram marcados num balé de encontros e reencontros naquele piso, que ora formava desenhos geométricos ora pinturas abstratas. Quantas danças garbosas de meu avô bailando por aquela casa permanecem dançando em meus olhos. Quantas vezes eu me sentei ao redor de uma daquelas duas mesas de madeira, construída por ele, para comer de iguarias típicas de minha avó como polenta com frango ou sorvete de ameixa.

Quantas foram as minhas corridas para abrir o portão da garagem festejando a chegada de meu avô. Quantas vezes eu cheguei ou sai dali debaixo de um guarda-chuva, enrolado num cobertor ou com roupas de meu avô. Foi lá que fui curado de tantas enfermidades físicas e espirituais, graças às receitas e aos feitiços de meu avô. Chegava a perder o rumo das horas quando imerso naquele mundo habitado por criaturas encantadas. Aquela casa plantada no número 71 da Rua São Miguel tinha um poder especial de mexer comigo.

Foi lá que vi minha avó cuidando de pintinhos, codornas, tartarugas, cachorros e até de uma porquinha. Foi lá que tomei para mim as dores de meu avô, o choro de minha avó. Foi lá que acompanhei os bordados de minha avó, as invenções de moda de meu avô. Foi lá que experimentei o sabor de uma vida simples, mas repleta de significados. Foi lá que vi meu avô chegando de caminhonete, de belina, de perua, de trator... Foi lá que como um joão-de-barro tive uma casa na árvore, moldada de acordo com as minhas vontades e necessidades.

Uma casa com muitas cores. Por debaixo daquelas paredes brancas, cômodos azuis, rosas, verdes. Ao contrário de papel, lá podia escrever mentalmente meus versos nos tijolinhos à vista que se enfileiravam a perder de vista. Lá, e somente lá, eu me lavava, me quarava e me pendurava nos varais da imaginação. E minha avó encobria minha tristeza com remendos de uma felicidade caipira, daquelas ingênuas e sem preço. Rua São Miguel, 71. Lá, sem dúvida, foi o meu começo.

Ainda escuto os sons daquela casa, que passam pelo velho rádio tocando modas de viola no rancho, pelos estalos dos canários da terra e do reino, pelo ronco do motor do tanque de lavar-roupa, pela caçarola de gordura fritando torresmos, pelos assovios de meu avô ou pela sua cantoria debaixo do chuveiro. O som das novelas na televisão, dos terços, das novenas, dos pedais da máquina de costura, dos churrascos, dos causos de assombração, dos ecos de histórias que nunca morriam...

Duas quaresmeiras num passeio que mais parecia um jardim de pedras portuguesas. Uma grade terracota que se acabava em lanças pontiagudas. A fachada de pedra e o chão de cacos de piso azul, amarelo, vermelho. Calçadas e muretas para se sentar e jogar conversa fora. Coqueiros, margaridas, orquídeas, azaléias, pés de couve, ramas de hortelã, roseiras, dálias, onze horas, alecrim, arruda, espada de São Jorge se entendiam perfeitamente nos canteiros. E o que dizer da jardineira que era puro cheiro-verde?

No quintal, a atração principal era um pé de fruta do conde. Isso sem falar das ervas medicinais, das flores de maio, dos temperos, do aguapé e das samambaias que enfeitavam os fundos da casa e davam tanto gosto aos olhos de minha avó. Por falar em enfeite, réstias de alho e esporas davam o tom da decoração. Naquela época, meu tempo era marcado pelas badaladas de um antigo relógio português de parede, que se exibia na sala de televisão, onde existia uma estante com bibelôs de patos, elefantes, cachorros e uma espécie de barril de madeira recheado de licor de jabuticaba.

Se o universo é feito de dimensões, eu passava de uma pra outra ao cruzar as cortinas de minha avó. Cortinas finas, claras e longas como os vestidos de noiva. As colônias de meu avô se misturavam aos cheiros da casa. O frescor de um perfume de silêncio era sentido na parte íntima, principalmente, no quarto do casal. Eu me vi crescer no espelho da penteadeira de minha avó, que servia de altar para as mais diversas imagens de santo. Nossa Senhora Aparecida, Desatadora dos Nós, Auxiliadora, Das Graças, de Fátima, São José, Menino Jesus...

Na casa de meus avos, outro mundo era possível. Havia algo de mágico em cada cômodo. Foi lá que me tornei poeta. Foi lá que me tornei escritor. Foi lá que me tornei contador de histórias. Muito do que sou foi forjado lá, entres conversas, sentimentos e aprendizados. Uma verdadeira escola. Foi lá que pela primeira vez na vida tomei uísque, falei eu te amo, tive, de fato, medo da morte. Foi lá que toda vez encontrava colo, incentivo e fé. Lá, ganhei asas e um céu para voar.

Rua São Miguel, 71. Foi nesse endereço que Adélia e Liberato viveram mais de quarenta anos de um casamento que ultrapassou a casa dos cinqüenta. Foi lá que criaram raízes, folhas, frutos... Foi lá que foram amados, abraçados e velados pela última vez. Foi lá que me ensinaram que a verdadeira riqueza não cabe num cofre, tanto que o deles andava sempre de portas abertas. Foi lá que construíram uma casa que vai além do concreto, da pintura, do telhado. Foi lá que eu nasci enquanto inspiração.

Rua São Miguel, 71... Até hoje carrego a semente daquele endereço em mim para um dia enfim poder plantá-la na continuação de um sonho, ou melhor, de uma casa que não acabou...


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