Daniel Campos

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15/06/2008 - Rua Mato Grosso, número 43

Rua Mato Grosso, número 43. Bairro da Santa Cruz. Foi em uma casa simples de paredes brancas e grade verde, que conheci um universo de perfumes. Não sei o que dona Ofélia e seu Antônio, os proprietários daquela casa, aprontaram para ela ter ficado impregnada em minhas narinas. Já no jardim, por entre um cimentado com alguns canteiros circulares despontava um pé de coqueiro, daqueles rechonchudos, que exalava um cheiro que até hoje não saiu de mim. Um cheiro doce e forte. Não sei se vinha de suas folhas, daquele seu fruto alaranjado que nascia em formato de abacaxi ou das orquídeas que ficavam amarradas em seu tronco. Podia vir também dos muitos pássaros, inclusive dos beija-flores, que vinham em busca de água com açúcar e quirela de milho.

Por inúmeras vezes, sentei em um banco de madeira, feito no melhor estilo romântico, para tentar entender aquele aroma e nunca consegui. Entrando na casa, a sala nos dava a dimensão de um cheiro agradável. Isso porque o sol batia no coqueiro, no pé de mimo, nos balõezinhos vermelhos antes de entrar na sala. E, além disso, havia o cheiro das cortinas, do sofá de tecido, do piso fresquinho... Um pouco mais à frente, a cozinha, onde um café coado no pano deixava um cheiro de dar água na boca. A parte isso, os temperos de dona Ofélia cheiravam para valer. Pareciam aqueles, das histórias, vindos diretos do mediterrâneo. Que o diga os que exalavam do bife flambado que ela fazia naquelas frigideiras que cheiravam um outro tempo.

Muitos dizem que água não tem cheiro. Mas a que se bebia na tália daquela casa tinha um perfume de fonte, de mina, de barro. Ali, naquela casa, tudo tinha cheiro. O frio, o calor, o sentimento, as lembranças, as histórias, os sorrisos. Por exemplo, os quartos cheiravam a sono. Uma vontade de dormir naquelas camas de verniz escuro e sonhar que a felicidade estava bem ali, ao nosso alcance. Naquele endereço a chuva tinha cheiro de bolinho. Em altares improvisados com toalhas brancas, santos de todos os tipos tinham aroma. Aliás, naquela casa, a fé era um perfume solto no ar. Havia um cheiro de sagrado vagando por aquele espaço.

Deixando a casa e rumando para o quintal, mais cheiros. Seja o cheiro vindo dos cadernos de escola de dona Ofélia, até hoje guardados com estimo, ou das ferramentas de seu Antônio, que recolhia cada parafuso que achava na rua. As coisas daqueles dois, como suas vidas, dividiam um mesmo espaço: um quartinho feito de depósito. Depósito de bons momentos. E por falar neles, ali por perto havia um meio saco de cimento, que com o passar dos anos envelheceu e se tornou um banco. Nele, ficou impregnado o cheiro dos churrascos de domingo que eram feitos naquele quintal.

Ah! Além disso, tinha uma espécie de jardim do éden ali nos fundos. Afinal, tudo que Ofélia plantava, brotava e dava frutos. E como ela gostava de plantar... Pois bem, imagine o leque de cheiros vindos do pé de pitanga, de mais um coqueiro daqueles rechonchudos, de um pé de jabuticaba que demorava a dar como ele só, de touceiras de cana, de parreiras de uvas verde, rubra e roxa, de um pé de pêssego, de pés de couve, de salsinha, de cebolinha, ramas e mais ramas de hortelã e de morango, pés de erva-doce e roseiras de tudo quanto é jeito.

Na verdade, o lar daqueles dois não era uma casa, propriamente dita, era uma perfumaria. E foi então que aqueles cheiros todos tiveram mais uma companhia: o perfume das flores do velório de seu Antônio. Naquele dia eu fui saber que o choro também tinha cheiro. E um cheiro que machuca a gente. O tempo passou e a casa perdeu sua boticária, aquela responsável pela maioria dos aromas. Dona Ofélia, dando por cumprida a sua missão ali, mudou-se em busca de outros cheiros. Desde então, nunca mais fui lá. Aliás, nunca mais passei naquela rua. No entanto, soube que a primeira atitude do novo proprietário foi a de cortar os coqueiros rechonchudos. Em silêncio, meu rosto ganhou uma lágrima. E por algum milagre, ela cheirou aquele mistério de perfumes que emanava daquele lugar, no mínimo, mágico. Se meu olfato um dia teve endereço na cidade, foi Rua Mato Grosso, número 43...


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