Daniel Campos

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Rua chico venâncio

Há mulheres que marcam passarelas em Nova Iorque, Milão, Paris... Há mulheres que se tornam símbolos de uma praia, como a Garota de Ipanema... Mas só uma mulher marcou uma rua como ela marcou. Quando ela surgia no portão de casa e colocava os pés na calçada de uma das ruas mais famosas de uma cidade do interior, pode-se dizer que um fenômeno acontecia. Homens, de todas as idades, classes sociais, estados civis e religiões saiam à porta de seus estabelecimentos para acompanhar os movimentos daquela garota. Mulheres, por curiosidade ou inveja, espionavam-na de forma discreta. Aliás, a notícia sobre a tal "musa da rua Chico Venâncio" se espalhou pela cidade de tal forma que muitos curiosos vinham de longe só para testemunhá-la.

No entanto, o que impressionava mesmo era o público cativo da rua - os ?olheiros vips? que viviam para, e só para, vê-la passar. Ela passava e a rua se atirava aos seus pés. Passava toda de branco a caminho do trabalho. Passava toda de malha a caminho da academia. Passava toda de jeans, de vestido, de saia,..., a caminho de sabe-se lá aonde. Aliás, o seu destino pouco importava. Quando ela passava, a rua mudava de cor, de temperatura e até de lugar. Ora subia na calçada da direita, ora subia na da esquerda ora subia em zigue-zague. Fazia um trajeto que contentasse a todos. E ao andar, tinha um movimento único. Um balanço. Um molejo. Um ?quê? capaz de mexer com o imaginário dos que povoavam aquela rua.

Os donos da cafeteria, da loja de R$ 1,99, da revenda de celular, da floricultura e os funcionários de dezenas de lojas e escritórios em geral tinham um verdadeiro frenesi ao vê-la. Mal apontava na rua e todos já ficavam a lhe esperar. Romanticamente, poderia dizer que seu perfume se espalhava para avisar os admiradores nada secretos. Mas, na verdade, a questão era mais prática do que poética. O primeiro que a avistava avisava o outro que avisava o outro que avisava o outro - fosse por gritos, assobios e até via telefone. Havia uma rede de comunicação incrível para cuidar da passagem daquela menina, isso sem contar o instinto.

Havia quem sentisse arrepio momentos antes dela passar. Havia quem a seguisse por metros e metros. Havia quem corresse na direção contrária ao seu caminhar só para depois vir ao seu encontro. Havia, simplesmente, quem ficava imóvel, completamente abobado. Havia quem arriscasse sorrisos, olhares e outros gestos sutis. No entanto, ao passar, fingia não perceber o aparato que existia só por causa dela. Contudo, passava na certeza de que sua passagem interferia no emocional da rua. Tinha algo de ternura e algo de sapeca. Por ser dentista, recém-formada, muitos tinham dor de dente psicológica diante da sua passagem. E nunca foi tão bom se ter dor de dente.

Às escondidas, fotografavam-na, filmavam-na, mas registro algum se equivalia ao ato de vê-la passar. Aquele ato ingênuo da paquera. Era isso, a rua a paquerava. Sua pele clara, seus cabelos ensolarados, sua boca pequena... O dono da cafeteria sonhava com o dia em que ela pedisse um café e um pão-de-queijo ao pé de seu ouvido. O dono da floricultura sonhava em lhe dar um botão de rosa a cada nova passagem. O dono da revenda de celular sonhava em ouvir sua voz em um de seus aparelhos. O dono da loja de R$ 1,99 sonhava com um sorriso diante da balinha que lhe daria de troco. Sonhos... Sonhos tão longe de acontecer.

Ela morava naquela rua, mas não dava o gostinho de parecer real a qualquer um dos que sonhavam com ela. Ninguém sabia seu nome ou sua idade ao certo. Em virtude da descendência de sua família, chamavam-na, carinhosamente, de "Turquinha". Uma menina que mudou a história de uma rua. Ao passar, os tantos sonhos e desejos daqueles que a acompanhavam seguiam-na como uma procissão, um cordão, um fecho de desfile... E tão logo ela sumia, a rua (que era reta) chegava a ficar torta. Torta de saudade.


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